Medicina alucinogénia: estaremos a olhar para os futuros antidepressivos?
Drogas psicadélicas e alucinogénias como o LSD e a psilocibina podem ser a próxima geração de antidepressivos. Tendo a sua utilização recreativa sido associada a expressões como “experiência mística” e “surtos psicóticos”, fomos investigar o que leva a comunidade científica a testá-las para o tratamento de uma das doenças mais prevalentes no mundo.
Tente abstrair-se de tudo o que já ouviu dizer acerca das substâncias alucinogénias. Vai precisar de ter a mente aberta para continuar a ler este artigo. Mas, antes de explorarmos o potencial terapêutico dos psicotrópicos mais populares, comecemos por perceber o que nos traz aqui.
“Temos uma crise global: as taxas de depressão são muito altas em todo o mundo e estão a aumentar o número de suicídios e os casos de dependência”, resumiu Michael Pollan, jornalista e autor norte-americano, em entrevista à nossa revista.
E os números oficiais confirmam as suas palavras: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão. Cinquenta por cento dos casos mais graves desta doença mental não são tratados. Da União Europeia, Portugal é o país com a prevalência mais elevada de perturbações depressivas, afetando cerca de 580 mil indivíduos. E o relatório Health at a Glance 2017, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OECD) mostrou que 66 por cento das mulheres portuguesas reportaram estados depressivos no ano anterior.
Trata-se de um problema de saúde incapacitante, representando cerca de metade das baixas médicas por doença crónica. É, pois, elevada a probabilidade de conhecermos alguém que já tenha tido uma depressão ou que esteja neste momento em sofrimento. Sente-se impotente, sem saber como ajudar o seu familiar ou amigo? Muitos médicos também.
Mais do mesmo
“A maioria dos medicamentos da área da psiquiatria tem uma eficácia limitada, consegue melhorar alguns sintomas, mas não os elimina na totalidade e tem muitos efeitos secundários”, confirma Tiago Reis Marques, médico psiquiatra e investigador no King’s College de Londres, no Reino Unido.
Os fármacos a que o especialista se refere são os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS). A propósito, a neurocientista Rebecca Brachman alertou, numa conferência TED, em 2016, para o facto de estes remédios poderem provocar “aumento de peso, insónia, tendências suicidas” e ainda demorarem “quatro a seis semanas a fazer efeito – naqueles doentes em que produzem resultado, porque há muitos em que não funcionam”.
Como se isto não bastasse para deixar a classe médica de mãos atadas e prolongar a dor dos pacientes, Tiago Reis Marques diz que, “nos últimos dez anos, existiu um autêntico deserto terapêutico, não surgiram novos fármacos nem novos princípios ativos”.
No fundo, é a falta de ferramentas para ajudar o crescente número de indivíduos que vivem com depressão que está a levar a comunidade científica a explorar o potencial terapêutico de drogas psicadélicas. “Alguns relatos episódicos de melhorias de sintomas com a utilização recreativa destas substâncias fizeram aguçar o interesse nelas”, admite o psiquiatra. Tudo isto somado está a fazer com que as instituições reguladoras norte-americanas e europeias, a Food and Drug Administration (FDA) e a European Medicines Agency (EMA), aprovem ensaios clínicos, ou seja, testes em seres humanos.
História de uso dos alucinogénios
“A utilização de substâncias alucinogénias é antiga”, nota Félix Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, secretário-geral da EUROTOX, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Farmacologia e membro da Comissão de Avaliação de Medicamentos do INFARMED. Na realidade, as grandes civilizações da Mesoamérica, como os olmecas, os maias e os astecas (de 1300 a.C. ao século XVI, aproximadamente), já usavam plantas com propriedades psicoativas nas cerimónias religiosas e para fins medicinais – por exemplo, o cato peiote e os cogumelos mágicos (psilocibina).
Com as sucessivas invasões e conquistas de outros povos, muitos destes conhecimentos foram sendo desvalorizados até caírem, praticamente, no esquecimento. Em 1938, Albert Hofmann sintetizou acidentalmente uma molécula que chamou de lysergsäurediethylamid, ou LSD. Em 1955, a psilocibina é (re)descoberta por R. Gordon Wasson, um micologista norte-americano que, reza a história, numa visita ao México, prova um cogumelo mágico. Subsequentemente, até ao final dos anos 60, foi estudada a aplicação dessas duas substâncias psicadélicas na psicoterapia assistida.
“Nos anos 70, houve uma viragem e começou uma luta contra a toxicodependência”, continua Félix Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto. Alguns casos de surtos psicóticos e de esquizofrenia espoletados pela toma recreativa destas drogas, muito populares na comunidade hippie e, décadas depois, entre os amantes da música eletrónica, marcaram o imaginário coletivo.
Inocente até prova em contrário
Curiosamente, a comunidade científica resolveu dar-lhes o benefício da dúvida, a estas e outras substâncias conhecidas do público pelas suas aplicações lúdicas, e estão a ser submetidas a novos testes para se averiguar os seus potenciais terapêuticos. “Decorrem ensaios clínicos para a utilização da cetamina na depressão grave, da psilocibina também na depressão, do MDMA (Ecstasy) como complemento da psicoterapia no stresse pós-traumático, entre outros”, informa Tiago Reis Marques.
Um pouco à semelhança dos antidepressivos comummente receitados, que aumentam os níveis de serotonina no cérebro, o professor catedrático Félix Carvalho diz que “a maior parte dos agentes alucinogénios – a psilocibina, o LSD e as triptaminas – atuam nos recetores 5-HT2A desse neurotransmissor que possuímos no sistema nervoso central e periférico”.
A diferença é que a estimulação desses recetores conduz “a modificações da perceção da realidade”. Abona a seu favor o facto de os riscos de dependência serem baixos porque, de acordo com o farmacêutico, “não têm grande potência para provocarem adicção e, normalmente, não originam morte por sobredosagem”.
Os efeitos visíveis das drogas psicadélicas
Embora possa dizer-se que a cetamina é uma droga psicadélica, Félix Carvalho esclarece que “vai interagir com recetores designados de NMDA, que impedem a passagem de iões de cálcio, sódio e potássio para o interior dos neurónios e isso leva aos seus efeitos anestésico e dissociativo”.
Esta poderá ser a substância mais fácil de aprovar como novo antidepressivo. Porquê? A cetamina já está legalizada e é utilizada como anestésico em contexto hospitalar. Mas isso está prestes a mudar. “Vem para o mercado brevemente e será disponibilizada em forma de spray nasal [para alívio da dor em casa]. Obviamente que as doses para a depressão seriam mais baixas, estamos a falar de um reaproveitamento”, constata Tiago Reis Marques.
Por outro lado, o MDMA, vulgarmente conhecido por Ecstasy, “é uma anfetamina que atua nos terminais nervosos, aumentando a libertação de serotonina e produzindo efeitos alucinogénios, que pode originar problemas fisiológicos a vários níveis”. Nomeadamente, acelera os batimentos cardíacos e aumenta a tensão arterial, compromete o funcionamento regular do fígado e está associado a défices cognitivos e perdas de memória típicos de alguém com demência.
Tudo sob controlo
Mesmo com supervisão médica ou em contexto de psicoterapia assistida, a psicoterapeuta Isabel Henriques sublinha que “as substâncias psicadélicas podem provocar alterações persistentes da perceção da realidade, despoletar surtos psicóticos – caracterizados por ansiedade, disforia, paranoia, alucinações visuais e/ ou auditivas, agressividade e/ou comportamentos autodestrutivos – e há pessoas que desenvolvem esquizofrenia”.
Um só episódio pode deixar sequelas para a vida. Daí que o psiquiatra e investigador do King’s College considere importante mencionar que “os próximos estudos vão testar estes fármacos em diferentes doses e ainda em dose única ou combinada com outros fármacos já existentes”. Caso a qualidade, eficácia e segurança das substâncias alucinogénias seja comprovada, Tiago Reis Marques afirma que “serão utilizadas no tratamento de determinadas patologias sem qualquer problema”.
O jornalista e autor norte-americano Michael Pollan acredita que “isso aconteça nos próximos cinco anos” e deixa uma última mensagem: “Quando as pessoas vivem com muita dor (física e/ou psicológica), vale a pena tolerar algum risco”.
Acredita que drogas alucinogénias como o LSD podem vir a ser usadas como tratamento? Saiba ainda quais os alimentos que ajudam a tratar a depressão.