Dependências: quais os vícios mais antigos e os de hoje?
Há substâncias e práticas que, devido ao perigo envolvido, são submetidas a um controlo rígido. Outras, de tão populares, tornaram-se parte da vida moderna, como as dependências das redes sociais, da pornografia em streaming e da obsessão por comida.
Há não muito tempo apontava-se-lhes o dedo, olhava-se com desdém, mudava-se de passeio… Tudo para evitar o contacto direto com os viciados e os seus vícios. E apesar do esforço por parte dos profissionais de saúde para mudar a mentalidade e atitude da sociedade em relação às dependências, estas continuam a carregar um estigma social tremendo.
Para o psiquiatra Miguel Vasconcelos, muita dessa carga negativa encontra-se na linguagem: “Vício não é uma palavra científica”.
De acordo com o especialista, a dependência, seja ela física ou comportamental, é uma doença: “Trata-se de uma questão de saúde, não de algo moralmente reprovável”.
Mas nem tudo é mau, já que, hoje em dia, Portugal é considerado um exemplo a seguir, sobretudo, no que toca às dependências físicas.
Dependências: é importante não julgar
Recuemos 17 anos, antes de arrancar o projeto de requalificação do Casal Ventoso. Nessa altura, este bairro lisboeta era conhecido, inclusive a nível europeu, como o mercado abastecedor de drogas, onde entre seis e sete mil pessoas procuravam “alívio” todos os dias.
No ano de 2001, entrou em vigor uma lei que veio descriminalizar a compra, a posse e o consumo de drogas no nosso país.
Esta política é vista como pioneira, particularmente lá fora, pois em menos de duas décadas a percentagem de consumidores de heroína baixou 50%. E, segundo dados do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), o número de overdoses fatais tem vindo a decrescer, bem como os casos de infeção VIH e de SIDA.
O sucesso da iniciativa também se deveu ao facto de ter sido acompanhada por ações de redução de risco e pela criação de estabelecimentos onde os indivíduos têm acesso a tratamento gratuito.
Claro que, para muitos profissionais de saúde e assistentes sociais, há ainda muito trabalho a fazer. No entanto, Miguel Vasconcelos diz que a lei “mudou o paradigma e permitiu que a sociedade começasse a ver as pessoas dependentes de outra forma, não como criminosos ou desviados”.
Hábito ou dependência?
Mais do que as substâncias psicoativas, o álcool é alvo de grande preocupação por parte dos especialistas, por ser “uma das dependências mais frequentes e mais graves, em Portugal”.
O cenário não podia ser mais complexo, já que se trata de uma substância altamente aditiva, cujo consumo não só é socialmente aceite, como incentivado.
Afinal, quando ingerida na quantidade recomendada (um copo de vinho ou cerveja, por dia), constitui um hábito saudável. Contudo, poucas são as pessoas que não bebem álcool ou que se ficam pela dose aconselhada. Então, quando é que podemos dizer que se tornou uma dependência?
A partir do momento em que perdemos o controlo ao desejo de consumir aquela substância e, nas palavras da psicóloga clínica Catarina de Castro Lopes, passamos a desvalorizar os “efeitos negativos para a saúde ou problemas a nível familiar“.
A nível cerebral “estabelecem-se vias típicas de dependência química”, que fazem com que a necessidade de ingerir álcool se torne quase primária.
Um resiste à tentação, o outro não
Hoje sabe-se que têm de estar reunidos uma série de fatores para que uma pessoa se torne dependente de uma substância ou comportamento, e que, mesmo estando tudo alinhado contra ela, nada garante que se venha a tornar adicta. Isto é, o facto de se ter acesso a drogas, álcool, sexo, jogo, pornografia, redes sociais, videojogos, etc., não significa que cederemos, necessariamente, à tentação.
A conjugação de fatores como a herança genética, o ambiente familiar, a pressão social, a existência ou não de doenças mentais, alguns traços da personalidade, é o que vai ajudar a determinar a forma como lidamos com os diversos estímulos que nos rodeiam e se temos maior ou menor propensão para comportamentos aditivos.
Igualmente, as circunstâncias de vida têm um grande peso aqui. Para ilustrar como, o psiquiatra Miguel Vasconcelos dá o exemplo de um paciente seu que participou na Guerra do Vietname: “Trabalhava numa base aérea, a dada altura ficou ferido e começaram a dar-lhe opiáceos para as dores. Até aí não tinha dependência, mas ficou dependente de heroína”.
Embora seja raro, se um indivíduo tiver que tomar durante um período relativamente alargado (mais de 20 dias seguidos) uma substância analgésica potente, para recuperar de uma lesão grave ou minimizar o sofrimento causado por um trauma, “pode ficar com dependência física”.
Genes da dependência?
Como vimos acima, a história familiar influencia bastante a probabilidade de uma pessoa se tornar adicta, seja pelo ambiente em que cresce ou os exemplos que o rodeiam.
“Sabemos que quem tem pais alcoólicos tem quatro vezes mais probabilidade de consumir álcool”, informa Catarina de Castro Lopes. Ainda assim, de acordo com os psiquiatras Miguel Vasconcelos e Gustavo Jesus, a ciência não avançou ao ponto de podermos identificar no nosso mapa genético os marcadores que estão associados à dependência de determinados comportamentos ou substâncias.
Porém, a psicóloga clínica adianta que a comunidade científica está a realizar múltiplos estudos para tentar encontrar as respostas para esta questão.
Lopes exemplifica esse esforço, citando as investigações que “encontraram uma associação entre uma variante do gene do recetor dopaminérgico subtipo 2 (DRD2 – alelo A1) e o alcoolismo; e outra que descobriu que o gene LRRK2 pode estar associado ao consumo abusivo de álcool”.
Propensão neurobiológica
O psiquiatra revela que quando repetimos o mesmo comportamento muitas vezes, porque nos dá prazer ou traz alívio, gera-se “um condicionamento cognitivo” nestes circuitos cerebrais. O que vai fazer com que continuemos a repeti-lo cada vez com mais frequência e intensidade.
Neste sentido, “gera-se uma dependência biológica e cognitiva”. Esta predisposição neurobiológica será tanto maior quanto mais instável for a personalidade, que se vai formando à medida que vamos crescendo e só estabiliza na fase adulta. Daí que uma dependência adquirida na adolescência seja mais difícil de tratar e de prevenir recaídas ao longo da vida.
Vulnerabilidade aditiva
No ponto de vista dos psiquiatras Miguel Vasconcelos e Gustavo Jesus, não podemos dizer que existam personalidades aditivas. “O que há são traços de personalidade, perturbações da personalidade e doenças mentais que aumentam a tendência para a adição”, elucida Jesus.
Assim, correm maior risco de se tornarem dependentes as pessoas impulsivas, que tendem a “desempenhar um determinado comportamento sem pensar nas consequências”. E o mesmo se pode dizer dos sujeitos com um tipo personalidade dependente, que “não têm autonomia para resolver sozinhos os seus problemas, necessitam sempre de um cônjuge, uma mãe, um pai, um filho, de quem dependem emocionalmente”.
Recuperar na era digital
Atualmente, existe uma resposta terapêutica para todas as dependências, incluindo as mais recentes ligadas à Internet – a adição às redes sociais e à pornografia em streaming. Curiosamente, o tratamento não mudou por hoje socializarmos, estudarmos e trabalharmos online.
O sucesso de qualquer tratamento para a dependência está, em grande medida, sujeito ao grau de motivação do indivíduo, da sua capacidade em admitir que tem um problema e de querer encontrar uma solução para o mesmo.
A terapia cognitivo-comportamental é a mais usada nestas situações, uma vez que, segundo a psicóloga Catarina de Castro Lopes, permite “identificar e analisar crenças associadas ao consumo de substâncias e padrões de comportamento desajustados”. Só depois se procede à “promoção da mudança”, que passa pela “regulação emocional, pelo controlo do impulso e pela prevenção de recaídas”.
Nalguns casos, continua a especialista, “poderá ser também necessário trabalhar a autoestima e autoconfiança”.
O psiquiatra Gustavo Jesus termina dizendo que o tratamautoento psicoterapêutico costuma estar associado a uma terapêutica farmacológica e que pode ser necessário remover “a pessoa dos ambientes associados à sua dependência”.
Sinais de alerta das dependências
Segundo o psiquiatra Gustavo Jesus, “os adolescentes são muito mais vulneráveis à adição porque o córtex pré-frontal (a área do cérebro que põe um travão aos comportamentos de risco) está menos desenvolvido”.
O especialista e a psicóloga clínica Catarina de Castro Lopes revelam os sinais a que deve estar atenta, para identificar uma potencial vulnerabilidade aditiva nos seus filhos. São eles:
- Mostram-se desmotivados ou parecem ter perdido o interesse pelas atividades que sempre lhes deram prazer;
- Dedicam cada vez mais tempo a um novo comportamento ou ocupação recreativa;
- Alteram as rotinas diárias sem motivo aparente, saltando refeições, deixando de dormir às horas normais, dormindo menos – que terá impacto no desempenho escolar;
- Têm mudanças de humor com mais frequência e maior intensidade, picos de ansiedade e agem impulsivamente;
- Isolam-se, evitam interações sociais ou têm um padrão de relacionamento interpessoal instável;
- Revelam uma perturbação da autoimagem e da autoestima;
- Fazem ameaças suicidas ou têm comportamentos de automutilação.
Características das dependências
Gustavo Jesus, psiquiatra, explica ainda quando um comportamento deixa de ser um hábito para se tornar uma doença.
- Tolerância = a mesma substância ou comportamento vai deixando de fazer o mesmo efeito com a passagem do tempo, exigindo o aumento da dosagem;
- Craving = sensação imperiosa de satisfazer o desejo pela substância ou comportamento aditivo;
- Disfuncionalidade = a dependência afeta todos os campos da vida.