Dificuldades na leitura? O seu filho pode ter dislexia
A prevalência mundial situa-se entre os 10% a 15%, já em Portugal há estudos que nos dizem que cerca de 5,4% da população não consegue ler fluentemente ou não compreende o que lê. O seu nome? Dislexia.
A dislexia é considerada uma dificuldade crónica. Não tem cura. E apesar de também não ser possível a prevenção, quanto mais cedo for detetada e se implementarem estratégias de intervenção adequada, maior a evolução que a criança terá.
Filipa Nunes Bento, psicóloga clínica, atualmente a exercer funções no centro psicopedagógico DesportivaMente, começa por nos introduzir ao tema de hoje.
De facto, já acompanhou várias crianças com esta dificuldade de aprendizagem específica da leitura. Sabia que quase metade (48%) dos alunos com necessidades educativas especiais têm dislexia?
A sua experiência profissional tornou-a especialista numa área ainda pouco conhecida ou mal-interpretada por muitos. Exceto, infelizmente, quando lhes toca de perto. Quisemos saber mais.
Quando a leitura é o grande desafio
Para quem tem dislexia, a atividade de ler assume um papel preponderante na sua vida, não pelas melhores razões.
Para estes indivíduos, ler exige um esforço tal que discriminar letras, juntá-las de forma a formarem palavras e, por fim, compreender o seu significado conjunto se torna para lá de complexo.
“A dislexia caracteriza-se por dificuldades na leitura, na sua precisão e/ou fluência, descodificação e capacidade de soletração, erros fonológicos (por exemplo, troca entre v-f) e erros visuo-espaciais (por exemplo, troca entre b-d)”, começa a psicóloga clínica.
E continua “estas crianças têm dificuldades na consciência fonológica, ou seja, em compreender que as palavras são repartíveis e compostas por sons (fonemas)”.
“Com isto, podem ocorrer dificuldades de compreensão dos textos e de desenvolvimento do vocabulário”, conclui prontamente.
Porque é que isto acontece?
A primeira coisa que devemos saber sobre a dislexia, quando se fala em causas, é que “esta dificuldade de aprendizagem não pode ser explicada pela qualidade do ensino, défice cognitivo ou razões socioculturais”, elucida-nos Filipa Nunes Bento.
Isto é, os alunos com estas dificuldades não devem ser considerados por esta razão preguiçosos, imaturos ou mesmo pouco inteligentes. Isto seria um mau julgamento. Não se trata sequer de à partida não gostarem de ler.
De facto, esta dificuldade tem uma base neurobiológica, com alterações na estrutura e funcionamento do cérebro.
Filipa Nunes Bento desenvolve: “As regiões do sistema neural de leitura, no hemisfério esquerdo do cérebro, funcionam de forma inapropriada nestas pessoas”. “Pensa-se que têm dificuldades em aceder às regiões responsáveis pela análise das palavras e pela automatização da leitura.”
Mas a genética também tem o seu peso. A hereditariedade é, pois, um fator de risco. Uma criança cujo pai seja disléxico tem um risco oito vezes maior em relação à população de ter esta dificuldade de aprendizagem.
Estudos referem também que 30% a 40% dos irmãos de pessoas com dislexia possuem a mesma dificuldade. Nos gémeos monozigóticos sobe para 70%.
Adultos atentos
De acordo Filipa Nunes Bento, alguns dos sinais ou sintomas a que pais, professores e outros profissionais podem estar atentos são:
Na entrada para o 1º ciclo
• Linguagem pouco desenvolvida, palavras mal pronunciadas e discurso desorganizado;
• Frases curtas, omissões e substituições de sílabas e fonemas;
• Problemas em decorar canções e lengalengas, e em fazer puzzles;
• Dificuldade na aquisição das noções de tempo e espaço;
• Dificuldade em saber e decorar as letras do seu nome.
Já no 1º ano
• Problemas em compreender que as palavras se dividem em sílabas e fonemas;
• Dificuldade em associar as letras aos respetivos sons;
• Dificuldade a ler textos, por vezes até nas palavras pequenas;
• Tenta escapar-se aos trabalhos que envolvam leitura e escrita;
• Necessidade de bastante acompanhamento individual para conseguir concluir os trabalhos.
A partir do 2º ano
• Evolução muito lenta na leitura e escrita;
• Dificuldade na leitura e/ou pronúncia de palavras grandes, difíceis e/ou pouco usuais, e substituição por outras com o mesmo significado;
• Dificuldades na interpretação de problemas matemáticos ou questões que exijam interpretação (até podem saber responder, mas não percebem o que é pedido);
• Leitura silabada e sem respeito à pontuação;
• Não conseguir acabar testes ou trabalhos no tempo indicado;
• Muitos erros ortográficos fonológicos (por exemplo, troca entre nh-lh) e/ou visuo-espaciais (por exemplo, troca entre p-q);
• Melhores resultados nas áreas que têm menor dependência da leitura, como a matemática, informática, artes visuais, etc.;
• Baixa autoestima;
• Sentimentos de desconforto e embaraço quando têm que se expor oralmente a ler, por exemplo, e tentativa de evitar a situação;
• Muita ansiedade nos momentos de avaliação.
“A partir do momento em que uma criança apresente vários dos sintomas indicadores, deverá ser encaminhada para um psicólogo ou técnico de educação especial, a fim de ser submetida a uma avaliação psicopedagógica”. Fala-se então em diagnóstico.
Esta avaliação inclui:
• História de desenvolvimento da criança. Obtida junto dos pais;
• Bateria de testes. Realizados com a criança para a avaliar a nível cognitivo, comportamental e emocional, mas também ao nível da leitura, linguagem oral e escrita;
• Informação adicional. Recolhida junto do professor ou diretor de turma.
No final é entregue um relatório aos pais, não só com a caracterização das áreas avaliadas como das necessidades terapêuticas.
“Este poderá ser partilhado com a escola e outros profissionais que acompanhem a criança, permitindo a ponte para um trabalho de equipa adequado e facilitando a estimulação por parte de todos os contextos próximos da criança”, esclarece a psicóloga clínica.
Sucesso e os seus envolvidos
Apesar de não haver uma cura, existem sim estratégias de intervenção psicopedagógicas que devem ser aplicadas no sentido de diminuir as dificuldades e de saber lidar com as mesmas.
A intervenção deve ser sempre ajustada caso a caso, pelo que os resultados da avaliação pedagógica permitem delinear um plano de intervenção adaptado a cada criança.
Sobretudo, torna-se necessário agir o mais rápido possível, já que “uma intervenção precoce a adaptada permite controlar grande parte das dificuldades”, alerta-nos Filipa Nunes Bento.
Algumas ideias do que os pais podem realizar em casa:
• Fazer sopa de letras, jogo do STOP, jogo da forca, jogo da soletração, e outros jogos que trabalhem o vocabulário;
• Incitar a leitura (primeiramente, com livros com pouco texto e mais imagens);
• Puzzles que associem letras e palavras;
• Procurar letras e palavras em revistas e jornais e fazerem colagens para criar frases;
• Fazer rimas, cantar canções e lengalengas;
• Escrever pequenas histórias em família, cartas ou bandas desenhadas;
• Dramatizar os textos que leem;
• Jogar ao jogo da memória, mas com sinónimos e antónimos, ou palavras e respetivos significados.
E quais as consequências na vida da criança afetada? Isto é, quisemos perceber se esta dificuldade não for devidamente acompanhada o que pode acontecer.
“Esta dificuldade de aprendizagem, quando não é trabalhada e controlada, pode causar um grande desgaste no aluno, fazendo com que se sinta incapaz, incompreendido e sozinho”
“Poderá sofrer momentos de muita ansiedade, tristeza e frustração por não conseguir completar as tarefas autonomamente ou no tempo pedido, evidenciar baixa autoestima e sentimentos de inferioridade”, esclarece a psicóloga clínica.
Um por todos e todos por um
A sociedade, a comunidade e a escola também podem – devem, aliás – estar atentas a esta problemática.
“Sobretudo, estarem atentas aos sinais e agirem o mais precocemente possível. Ignorar esses sinais pode ter várias consequências a curto, médio e longo prazo para a criança e para os ambientes em que se insere”, discorre Filipa Nunes Bento.
Na escola, o contexto mais próximo da criança depois de casa, é fundamental que os professores façam adaptações necessárias e criem situações equitativas dentro e fora da sala de aula.
Não se trata de beneficiar estes alunos, na verdade “um aluno com dislexia tem que se esforçar tanto ou mais que um aluno que não tem essa dificuldade, mesmo com as adaptações individuais”, adverte a psicóloga clínica.
É necessário, pois, impedir a propagação de desinformação que prejudique estas crianças, nomeadamente travando a disseminação dos principais mitos aqui presentes. Seguem-se alguns e a seu esclarecimento.
Principais mitos associados à dislexia
Já se deparou com alguma destas (in)verdades? São as mais comuns no que concerne à dislexia, segundo Filipa Nunes Bento.
“Dislexia é sinónimo de baixa inteligência”
Diversos estudos já comprovaram que pessoas com dislexia têm inteligência dentro ou acima da média. Esta dificuldade nada tem a ver com incapacidade intelectual. Aliás, se uma pessoa tiver inteligência inferior à média não poderá ter dislexia.
“A dislexia é um problema de visão”:
A dislexia não está associada a um défice visual. Quando se faz o diagnóstico, antes da avaliação psicopedagógica, a criança deve realizar exames auditivos e visuais para excluir essas hipóteses.
“A dislexia é uma dificuldade que se manifesta apenas durante a infância”:
Apesar de maioria dos diagnósticos serem realizados durante a infância, pois é quando os sinais são mais evidentes, a dislexia acompanha a pessoa durante toda a sua vida.
“É melhor não diagnosticar crianças disléxicas, pois ficam rotuladas, e isso ainda é pior”
Ignorar uma dificuldade de aprendizagem pode, na verdade, contribuir para o seu agravamento.
A maior lição
Finalmente, tentámos perceber o que é que a experiência clínica de Filipa Nunes Bento lhe trouxe, o que a surpreende verdadeiramente todos os dias com estes meninos e meninas.
“Uma das principais coisas que o meu trabalho me tem ensinado é que a dislexia pode ser um obstáculo, mas não é um impedimento”, refere assim que lhe é feita a questão.
“Algumas das crianças mais brilhantes, empenhadas e com fantásticos resultados escolares que conheço têm dislexia”, faz uma pausa e termina com algo para ficarmos a pensar.
“Com isto quero dizer que não importa as condições que temos, importa sim fazermos com elas o máximo que conseguirmos, mesmo que o caminho seja diferente e, por vezes, mais demorado ou complicado”.