Saúde

Disruptores endócrinos. Os inimigos invisíveis

Todos os dias, respiramos, tocamos e ingerimos substâncias que têm um impacto negativo na nossa saúde. A comunidade científica chama-lhes desreguladores endócrinos e associa-os ao aumento da prevalência de doenças como a obesidade, entre outras.

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desreguladores endócrinos
Filipa Basílio da Silva
Escrito por
Ago. 03, 2018

Está confortavelmente sentada? Tem um copo de água ao lado, para ir bebendo enquanto lê este artigo? Então, antes
de começar, dê um gole, inspire fundo e expire.

Este exercício tem como propósito fazê-la parar para pensar, refletir naquilo que acabou de entrar no seu corpo sem a sua autorização, na realidade, sem que se tenha apercebido. São matérias, algumas das quais invisíveis a olho nu, presentes no ar que respiramos, nos objetos do quotidiano que tocamos e na comida e bebida que ingerimos, que estão a interferir com o normal funcionamento dos nossos órgãos.

Desregulador endócrino é uma substância, mistura de substâncias ou um composto exógeno que altera uma ou várias funções do sistema endócrino e tem, consequentemente, efeitos adversos sobre a saúde num organismo intacto, sua descendência, ou (sub) populações”, esclarece Catarina Mansilha, responsável técnica do Laboratório de Química e Toxicologia da Unidade de Água e Solo do Departamento de Saúde Ambiental do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge.

Embora não seja possível escapar-se-lhes totalmente, se souber quais são as principais fontes, pode reduzir o contacto com eles e minimizar o seu efeito.

Os disruptores endócrinos são omnipresentes?

Alguns dos disruptores endócrinos são de origem natural, como as isoflavonas da soja, as dioxinas originadas pela combustão de matéria orgânica (madeira, carvão, petróleo) e alguns metais (cádmio, mercúrio e chumbo), mas muitos foram sintetizados pelo ser humano.

“São considerados desreguladores endócrinos os estrogénios naturais e sintéticos, como a estrona, o 17β-estradiol, o estriol, os fitoestrogénios e o 17α- etinilestradiol, bem como uma ampla variedade de poluentes”, enumera a especialista em Química e Toxicologia.

Podemos encontrá-los em produtos de uso corrente, como cosméticos, produtos de higiene pessoal, produtos de limpeza, protetores solares, perfumes, ambientadores, plásticos, tintas, fármacos – Paula Freitas, endocrinologista

Isto fez-nos questionar se existe alguma coisa em que os disruptores endócrinos não estejam presentes. Mas as respostas que obtivemos são, no mínimo, desanimadoras.

Segundo Paula Freitas, médica endocrinologista no Centro Hospitalar São João, professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade, “existem em toda a cadeia alimentar, desde o plâncton aos peixes, das aves a outros animais, em produtos associados à agricultura, em químicos industriais, fitoquímicos, entre outros”.

E Catarina Mansilha, investigadora do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, avisa que “podemos encontrá-los em produtos de uso corrente, como cosméticos, produtos de higiene pessoal, produtos de limpeza, protetores solares, perfumes, ambientadores, plásticos, tintas, fármacos, subprodutos de incineração de resíduos, aditivos plásticos, etc”.

A ponta do icebergue

Para dificultar ainda mais o problema, os alteradores não só estão em todo o lado como ainda conseguem penetrar no nosso organismo por diversas vias, seja pela inalação, pelo contacto com a pele, através da ingestão de líquidos e alimentos e pela placenta. Tudo somado, o ser humano fica numa situação complicada, entre a espada e a parede.

Existem aproximadamente 80 mil químicos em circulação a que estamos expostos no dia a dia – Russ Hauser, investigador de Harvard

“Na atmosfera, na água e no solo, podemos ter ínfimas partes por milhão, uma concentração baixíssima, mas, ao nível trófico, a concentração vai aumentando. Porque os animais comem-se uns aos outros e os alteradores endócrinos vão-se acumulando no tecido adiposo – quer dizer que vão estar presentes na gordura quer do peixe quer dos animais terrestres que ingerimos”, frisa Conceição Calhau, professora de Nutrição e Metabolismo da Nova Medical School, em Lisboa, e investigadora no Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS), no Porto.

Sem sinais de abrandamento, o progresso tecnológico e industrial continua a exigir o desenvolvimento de novos materiais e substâncias para uso humano no quotidiano.

Russ Hauser, investigador dos departamentos de saúde ambiental e epidemiologia da Universidade de Harvard, nos EUA, disse ao Huffington Post que, hoje, “existem aproximadamente 80 mil químicos em circulação a que estamos expostos no dia a dia”. Contudo, só se conhecem as consequências que algumas centenas deles podem ter no nosso organismo.

“O impacto na saúde das restantes substâncias ainda não foi investigado”, declarou no fórum Hormone-Altering
Chemicals: Fertility and Health Implications, em 2017.

Desreguladores endócrinos: patologia clínica

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU) publicaram, em 2012, um relatório conjunto, intitulado Global Assessment of the State-of-the-science of Endocrine Disruptors, onde fica claro que os desreguladores endócrinos têm “efeitos subtis, mas duradouros, nos tecidos biológicos”. E que as “alterações hormonais que provocam vulnerabilizam o sistema nervoso”. E ainda que a gravidez é um momento de grande risco, porque “a transferência dessas substâncias da mãe para o bebé, mais tarde, vai produzir consequências
adversas na saúde” da criança.

Porém, basta uma investigação superficial para nos apercebermos que faltam capítulos a esta história e que os disruptores endócrinos podem provocar bastantes mais efeitos negativos.

Paula Freitas confirmou a nossa suspeita: “Vão ter alvos metabólicos como o tecido adiposo, o pâncreas, o fígado,
o cérebro e o tecido musculoesquelético, e não só. Também podem interferir com hormonas que controlam a saciedade e o apetite, e, deste modo, contribuir para a obesidade e promover a herança epigenética transgeracional
desta doença”.

A investigadora do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge Catarina Mansilha refere também que a exposição a certos desreguladores endócrinos tem sido associada “a problemas de fertilidade masculina, alterações no aparelho reprodutor, aumento da incidência de cancro da mama, do útero, do testículo e da próstata, endometriose, puberdade precoce, alterações do funcionamento da glândula da tiroide, entre outros”.

Gerações de mutantes?

Embora todos estejamos em risco, as mulheres grávidas, os bebés in utero e as crianças – particularmente nos dois primeiros anos de vida – são os grupos que mais preocupam a comunidade científica.

“Um feto será exposto a mais de 300 químicos sintéticos antes de sair do ventre da mãe”, informou Tyrone Hayes, investigador de Biologia Integrativa na Universidade da Califórnia (polo de Berkeley), nos EUA, numa conferência TED, em março de 2018.

O professor e ativista acrescentou ainda que a agência norte-americana Centers for Disease Control and Prevention “correlacionou a exposição de seres humanos ao atrazine [um herbicida] com problemas de fertilidade e defeitos de nascença – incluindo malformações genitais nos bebés do sexo masculino”.

Passou a haver diabetes tipo I inaugural em maior prevalência e a idade de manifestação da doença é mais precoce – Conceição Calhau, nutricionista

No entanto, infelizmente, as consequências não se ficam por aí. Conceição Calhau conta que “há trabalhos científicos
a associar uma elevada concentração de alteradores endócrinos (como os PCB) no cordão umbilical a um défice cognitivo aos 8 anos de idade; faz sentido, porque a formação dos neurónios ocorre in utero e está a ser desregulada – então o novo ser nasce perfeito do ponto de vista anatómico, mas malformado do ponto de vista funcional”.

Essa vulnerabilidade deixa marcas, de uma forma ou de outra. A especialista em Nutrição e Metabolismo relata que estão a aparecer mais crianças pequenas com problemas de saúde que, nos casos raros em que surgiam, anteriormente, apresentavam sintomas mais tarde: “Passou a haver diabetes tipo I inaugural em maior prevalência e a idade de manifestação da doença é mais precoce. Também aumentou a frequência de casos de alterações da tiroide, que é importantíssima para a parte da cognição e na regulação metabólica”.

Sem fuga possível dos alteradores

Todos nós temos uma quota-parte de responsabilidade na existência de (tantos) alteradores endócrinos, já que muitas dessas matérias que estão a causar problemas médicos foram criadas pelo Homem para aumentar as condições de conforto e, ironicamente, melhorar a sua qualidade de vida. Será tarde demais para carregar no botão reset e apagar todas as atualizações?

Fomo-nos habituando às comodidades modernas, como o usar plásticos, a tomar a pílula com estrogénios, a pintar o cabelo, a usar utensílios de cozinha antiaderentes, a vestir impermeáveis, etc.; dificilmente vamos retroceder na sua utilização – Conceição Calhau

A professora de Nutrição e Metabolismo e investigadora no CINTESIS não se mostra otimista quanto a modificações radicais no nosso estilo de vida. “Fomo-nos habituando às comodidades modernas, como o usar plásticos, a tomar a pílula com estrogénios, a pintar o cabelo, a usar utensílios de cozinha antiaderentes, a vestir impermeáveis, etc.; dificilmente vamos retroceder na sua utilização”.

Ainda assim, as organizações internacionais, como a OMS e a ONU, têm pressionado as instituições políticas europeias a implementar medidas que ajudem a minimizar os efeitos dos disruptores endócrinos.

“A União Europeia pretende implementar um sistema regulamentar que consagre em legislação a definição de critérios científicos para os desreguladores endócrinos, com vista a assegurar um elevado nível de proteção da saúde humana e do ambiente contra os riscos toxicológicos”, avança Catarina Mansilha.

Dados os elevadíssimos custos dos tratamentos médicos para todas as patologias resultantes da ação dos alteradores endócrinos, muitas delas crónicas e com uma prevalência crescente, espera-se que, nas próximas décadas, as entidades competentes comecem a atuar a montante, incentivando a mudanças nos padrões de consumo.

bebés também afetados por substâncias que desregulam o sistema endócrino

As crianças até aos 2 anos de idade são um dos grupos de maior risco.

As pessoas, tendo consciência dos riscos para o ambiente e para a sua saúde, podem tomar precauções. Quais? Conceição Calhau termina aconselhando a “comprar mais alimentos de produção biológica, mesmo a carne estará menos contaminada, e escolher peixe selvagem em vez de aquicultura, optar por produtos de vidro e evitar os de plástico. Se os consumidores tiverem comportamentos em massa, as disponibilidades vão diminuindo”.

Substâncias que desregulam o sistema endócrino

De origem natural

Isoflavonas (fitoestrogénios), nutriente encontrado na soja;

Dioxinas resultantes da combustão de matéria orgânica (madeira, carvão, petróleo);

Cádmio, um metal pesado que está presente no fumo do tabaco e nas pilhas;

• Mercúrio, metal tóxico emitido por vulcões ativos, pelos incêndios florestais e pela combustão de carvão e de petróleo;

• Chumbo, um metal pesado comummente usado nas indústrias metalúrgica, de munições e de tintas e ainda na construção civil;

disruptores endócrinos

“É praticamente impossível eliminar por completo a exposição a desreguladores endócrinos, uma vez que se encontram em quase tudo o que utilizamos na nossa vida quotidiana e também estão presentes no ambiente”, refere Catarina Mansilha.

Químicos sintéticos

Solventes industriais e derivados (bifenilos policlorados ou PCB, dioxinas);

Plásticos (bisfenol A ou BPA, ftalatos) – ou seja, biberões, copos, garrafas, utensílios, brinquedos, cosméticos carros, aviões, etc;

Pesticidas (metoxicloro, cloropiritos, diclorodifeniltricloroetano ou DDT);

Herbicidas (atrazine);

 Fungicidas (vinclozolina);

Produtos farmacêuticos (dietilestibestrol ou DES);

• Conservantes (parabenos);

• Alquilfenóis – encontram-se em produtos de uso doméstico e industriais.

Fontes: Catarina Mansilha, investigadora de saúde ambiental; Conceição Calhau, nutricionista; Paula Freitas, endocrinologista.

Os incêndios e os alteradores endócrinos

A Agência Portuguesa do Ambiente estima que tenham ardido cerca de 418 mil hectares de floresta no território
português só em 2017. É o segundo pior ano de incêndios que tivemos, a seguir a 2003, quando se calcula que os fogos terão devastado uma área superior a 475 mil hectares.

Portugal não se porta nada bem com os incêndios. Mais tarde ou mais cedo, vamos ser alvo de pressões dos outros países europeus que receberam as nossas emissões – Conceição Calhau

Algumas evidências científicas têm mostrado que os incêndios florestais aumentam a quantidade de desreguladores endócrinos no meio ambiente, pondo em risco a saúde das pessoas nas imediações.

Conceição Calhau, professora de Nutrição e Metabolismo na Nova Medical School e investigadora no CINTESIS, deixa uma crítica à gestão desse problema, no nosso País: “Portugal não se porta nada bem com os incêndios. Mais tarde ou mais cedo, vamos ser alvo de pressões dos outros países europeus que receberam as nossas emissões. Porque não é só a combustão de matéria orgânica que está em questão, que já de si liberta dioxinas [substâncias tóxicas formadas nos processos de combustão], mas também de queimar plásticos e material de construção das casas. A disseminação de alteradores endócrinos é enormíssima, devido à deslocação do ar”.

Todavia, Catarina Mansilha, responsável técnica do Laboratório de Química e Toxicologia da Unidade de Água e Solo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, diz que são necessários mais estudos para se ter uma melhor noção dos riscos reais para a saúde das populações diretamente afetadas pelos fogos e outros ainda para averiguar os potenciais danos indiretamente causados por essas catástrofes naturais.

“Cada caso é um caso, e a intensidade e duração do incêndio, as características da zona ardida, bem como as condições meteorológicas pós-incêndio, são fatores muito importantes no que respeita a fenómenos de contaminação ambiental”, esclarece a especialista.

O que fazer para atenuar o efeito destes disruptores?

Ainda que não seja possível evitar totalmente os poluentes que provocam alterações no sistema endócrino, há algumas medidas que ajudam a reduzir o contacto com os mesmos.

1. Lave as mãos antes de comer;

2. Armazene a água em garrafas de vidro ou aço inoxidável;

3. Evite beber bebidas quentes, como o café e o chá, em copos de plástico;

4. Leia os rótulos das comidas, dos cosméticos e os constituintes das embalagens. Não compre produtos de cuidado pessoal ou de limpeza que contenham compostos referenciados como desreguladores endócrinos;

5. Coma sobretudo alimentos frescos e biológicos;

6. Reduza o consumo de enlatados e produtos de origem animal, especialmente os ricos em gorduras. Algums exemplos são os laticínios, as carnes vermelhas e os peixes gordos (de aquicultura), porque estão mais contaminados;

7. Evite os molhos sintéticos, faça-os em casa – por exemplo, maionese, ketchup, pesto, etc;

8. Use utensílios ou objetos de madeira, porcelana, aço inoxidável ou vidro para cozinhar. Evite os materiais com
antiaderente;

9. Conserve os alimentos e aqueça a comida em recipientes ou pratos de cerâmica ou de vidro;

10. Descarte utensílios de plástico lascados ou arranhados e evite lavá-los com detergentes fortes ou na máquina de lavar;

11. Evite o contacto com papel reciclado e papéis brilhantes – podem ser revestidos por químicos e ter mais disruptores endócrinos que o esperado;

12. Não use tintas e outros produtos similares em áreas que não sejam bem ventiladas;

13. Não faça exercício físico em zonas poluídas;

14. Se for uma mulher em idade fértil e quiser engravidar, além de respeitar os pontos anteriores, convém privar-se de algumas coisas durante o período de gestação, como pintar o cabelo e as unhas.

Fontes: Catarina Mansilha, investigadora de saúde ambiental; Conceição Calhau, nutricionista; Paula Freitas, endocrinologista.

 


 

 

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