É muito possível que tenha uma amiga que desconfie estar associada a algum distúrbio alimentar. Pode até ter sugerido o termo anorexia numa conversa casual e ter sido mal interpretada.
Também é possível que seja uma avó mais atenta a sinais que lhe estão a sussurrar ao ouvido de que algo está mal ou, pelo contrário, pode ser uma mãe a quem lhe foi informado um diagnóstico médico que a surpreendeu por completo: bulimia.
Ou pode ser a própria, a sentir vergonha e culpa de uma fome em descontrolo cuja razão desconhece e a designação nem sabe que existe – olá binge eating.
Falamos no feminino porque 90% destes casos surgem associados a este sexo, principalmente em mulheres jovens, mas não esqueçamos todos os afetados, pelo que os rapazes também são vulneráveis a estas perturbações.
Estas correspondem a um conjunto de distúrbios alimentares cujo denominador em comum é uma preocupação excessiva com o peso do corpo e envolvem emoções, atitudes e comportamentos cujo excesso pode mesmo colocar a vida em risco.
Um interesse genuíno por um tema tão intenso, bem como o desejo de fazê-lo chegar a um maior número possível de pessoas, foram o mote para este artigo, para o qual contamos com a colaboração da psicóloga clínica e terapeuta Emdr Catarina Canelas Martins, cujo trabalho tem vindo a desenvolver na clínica de psicologia e coaching Learn2be.
O início de tudo
“O controlo do peso e a preocupação com a imagem corporal parecem fazer parte da nossa sociedade hoje em dia e não têm necessariamente de representar um problema” começa por nos explicar Catarina Canelas Martins. Então como fazer a distinção entre o normal e o patológico?
“Estes distúrbios são sérios e não se tratam apenas de preocupação com o corpo ou com a alimentação. Vão além disso [como veremos mais à frente], apresentando um risco sério ao nível da saúde física e emocional e representando um desafio enorme para as famílias” continua.
Do que percebemos da nossa conversa com a psicóloga, é na adolescência e início da idade adulta que ocorre a fase de maior risco, com mudanças físicas, psicológicas e familiares a acontecerem a juntar-se à pressão social existente.
Outros fatores de risco associados podem ser o facto de haverem mais elementos da família com estas perturbações ou um foco excessivo no controlo alimentar e a prática de desportos de alta exigência ao nível físico e da imagem corporal, como o ballet por exemplo.
E de onde vem tudo isto? Pergunta-se a leitora e nós invariavelmente. A psicologia dá-nos causas multifatoriais, isto é, que podem contemplar aspetos genéticos, psicológicos e ambientais.
Vamos então distinguir estas três perturbações, em que o que as une é o facto de “a comida ganhar uma função “extra-alimentar” e começar a ser utilizada como forma de gestão emocional, controlo da imagem corporal e autoestima” explica-nos a terapeuta.
Anorexia
“Na anorexia há um foco excessivo na forma e peso corporal, fazendo-se depender o valor pessoal daquilo que é o número da balança e o que se vê no espelho” começa por desvendar Catarina Canelas Martins sobre a primeira perturbação, acrescentando que esta “está associada a características de personalidade como o perfecionismo, existindo um foco obsessivo no controlo do peso pelo medo de engordar mesmo quando já se verifica um peso corporal abaixo do saudável.”
Sinais
• Não querer participar em eventos onde exista um confronto com a comida (aniversários por exemplo);
• Frases frequentes como “já comi” ou “não tenho fome”;
• Comer muito pouco;
• Vestir roupas largas para não se notar a perca de peso;
• Muito medo de engordar;
• Vários comentários em relação ao peso;
• Amenorreia (ausência de menstruação durante dois ou mais ciclos);
• Pele manchada ou amarelada, coberta por pelos finos;
• Lentificação do pensamento;
• Depressão;
• Extrema sensibilidade ao frio;
• Desgaste muscular e ósseo;
• Mentiras em relação à alimentação;
• Rituais em torno da preparação dos alimentos (comer muito devagar, cortar a comida em pedaços muito pequenos).
Bulimia
Relativamente a esta perturbação, Catarina fala-nos de pessoas que têm comportamentos de compulsão alimentar. Ou seja, “existe uma perda de controlo com uma ingestão excessiva num curto espaço de tempo, seguida de comportamentos de compensação pela culpa associada a esta ingestão exagerada, como o vómito, o uso de laxantes ou longos períodos de jejum.”
Tentámos então perceber o que une e o que separa estas perturbações.
“Tal como na anorexia, na bulimia há um foco excessivo no peso e, por norma, uma imagem corporal distorcida” começa por nos explicar a psicóloga.
Por outro lado, “ao contrário da anorexia, as pessoas que sofrem de bulimia conseguem, habitualmente, manter um peso dentro do considerado normal, conservando os seus hábitos alimentares e exercícios secretos, sendo, por isso, mais difícil de identificar para quem está por perto”.
Sinais
• Mudanças frequentes de peso;
• Calos nas mãos (pela indução do vómito);
• Danos ao nível dentário;
• Fadiga, sensação de cansaço;
• Alterações no sono;
• Variações menstruais;
• Preocupação excessiva com a alimentação, comida, corpo e peso;
• Baixa autoestima;
• Sentimentos de vergonha e culpa depois de comer;
• Insatisfação extrema com o corpo;
• Isolamento;
• Ausência depois de períodos alimentares (para ir estimular o vómito);
• Promoção do desaparecimento ou acumulação de comida;
• Mentiras em relação à alimentação.
Transtorno da compulsão alimentar periódica ou binge eating
Esta é a mais comum das três, apesar de muitas pessoas nem terem a noção de se tratar de uma perturbação, ou pelo menos não lhe conhecem o nome.
“Poderíamos chamá-la de fome emocional e não física, onde existe descontrolo, insatisfação, culpa” começa por nos revelar Catarina, pelo que lhe pedimos que nos explique um pouco melhor.
“O binge eating é um distúrbio alimentar caracterizado pela compulsão. Ou seja, a pessoa come compulsivamente uma quantidade de comida sem controlo. Ou acaba de comer e volta a comer num curto espaço de tempo” desenvolve a psicóloga.
Neste caso, qual a diferença para as outras duas? “Não existe um comportamento compensatório, nem pela restrição calórica, nem pela purga (vómito), utilização de laxantes ou desporto para compensar as calorias ingeridas” conclui com grande clareza.
Quanto aos sinais de alerta, são bastante semelhantes aos da bulimia, tirando os períodos compensatórios. Por sua vez, alguns fatores de risco, também eles multifatoriais apresentam-se como:
• Depressão;
• Obesidade;
• Histórico familiar de distúrbios alimentares;
• Histórico de abuso sexual;
• Ter sido vítima de bullying;
• Exposição frequente a comentários negativos sobre o peso ou hábitos dietéticos;
• Baixa autoestima;
• Ter menos de 25 anos.
Consequências perigosas
“Dependendo da gravidade e prolongamento no tempo da perturbação, esta pode ter consequências irreversíveis ou mesmo fatais” adverte a psicóloga, continuando “falo mesmo em morte em casos extremos, mas com frequência o sistema familiar fica muito debilitado por toda a perturbação vivida e mesmo fisicamente estas doenças têm consequências graves ao nível da saúde pelo excesso de comida inserida (diabetes) ou pela escassez (osteoporose, problemas gástricos, intestinais e dentários)
Na nossa conversa com a psicóloga abordamos também a questão das recaídas. De facto, é muito comum “existirem recaídas nestas doenças, que se consideram para a vida, ou seja, a pessoa terá sempre de estar atenta” explica-nos acrescentando que estas levam muitas vezes a depressões e tentativas de suicídio associadas.
Questionamos se estas reincidências se devem à ansiedade. “Tudo o que implica ansiedade e desafios podem ser desencandeadores” continua, pelo que “fases de mudança como desafios profissionais ou desgostos amorosos podem ter influência” elucida-nos a psicóloga.
Quem deve intervir?
“Considero que a melhor intervenção será multidisciplinar, com profissionais da área da psicologia, nutrição, psiquiatria.
Ao nível psicológico é essencial este acompanhamento ser feito assim que possível no sentido de trabalhar as emoções que levam a esta relação disfuncional com a comida” explica-nos Catarina Canelas Martina.
“Também poderão ser importantes intervenções familiares e/ou grupos de pais, tendo em conta que esta doença surge muitas vezes na adolescência e toda a família acaba por ter um papel relevante no tratamento” conclui.
Prevenir é (sempre) melhor que remediar
“Os sinais já referidos podem ser um alerta para uma atenção redobrada para pais, amigas/os, professores, treinadores, entre outros”, pelo que a psicóloga acrescenta que a presença dos mesmos “não significa que exista uma perturbação, são apenas isso mesmo, sinais, que combinados com a personalidade e a perda de peso num curto espaço de tempo poderão ser uma forma de identificar que a pessoa precisa de uma ajuda especializada”.
Mas a prevenção destas perturbações quer-se ainda mais holística. A começar no seio familiar, a estrutura social de base, com um investimento numa relação saudável com a comida, uma gestão emocional trabalhada e um desenvolvimento da autoestima.
“Se é mãe, então poderá refletir na sua relação com a comida e como esta está a ser passada para os seus filhos. Será que comenta a forma corporal deles? Será que insiste para que comam ou parem de comer?” a psicóloga deixa o desafio em forma de questões.
“Mais importante do que a forma corporal ou a quantidade de comida que ingerem é a noção que os seus filhos precisam de desenvolver sobre o seu valor pessoal ser independente de tudo isto e sobre a relação com a comida ter uma função de prazer (sempre!) mas sobretudo de alimentação” continua a terapeuta.
“Podemos desde cedo ensinar as nossas crianças a lidarem com os seus corpos, com aceitação e a perceber a maravilha das particularidades que nos caracterizam e nos distinguem” termina.
Mindful eating
No final da nossa conversa tão exaustiva (pela sua profundidade) e informativa, Catarina Canelas Martins deixa-nos uma surpresa agradável: introduz-nos ao conceito de mindful eating, cada vez mais em voga e uma mais-valia para desenvolvermos uma alimentação mais consciente – e para que também a possamos passar aos nossos filhos.
Mas o que é? “No fundo trata-se de é uma forma de ganhar mais consciência e controlo na alimentação. Comer com consciência vai fazer com que ganhe mais noção da sua fome real, fica saciada e percebe se a vontade de comer é emocional ou não” explica-nos pelo que nos interrogamos qual o papel dos pais aqui.
“Estes podem ter um papel fundamental porque acabam por educar os filhos muitas vezes sem os ensinar a estar conscientes da fome… utilizam frases como “tens de comer tudo até ao fim” sem dar à criança espaço para se expressar acerca da sua fome. Então pode ser um trabalho feito desde cedo” conclui, e despedimo-nos com um sentimento de dever cumprido.