A qualidade do nosso sono define a qualidade do nosso acordar, afirma um especialista
Se, antes, se pensava que dormir era apenas desligar o cérebro, hoje, sublinha o professor de Neurociência Circadiana na Universidade de Oxford, sabe-se que consolida a memória, a capacidade de reter informação e de processar esta e as emoções. Dormir bem faz-nos viver mais e melhor.
Russel Foster, professor de Neurociência Circadiana e diretor do Instituto do Sono e Neurociência Circadiana, na Universidade de Oxford, que, há quatro décadas se dedica a estudar a natureza do tempo biológico, não tem dúvidas: “Não é possível compreender corretamente o sono sem se perceber o funcionamento do relógio biológico, que, por sua vez, é regulado pelo sono”.
O sucesso de várias coisas na nossa vida, como “conduzir até casa ou até fazer uma dieta para emagrecer”, depende de estarmos a trabalhar a favor dos ciclos de 24 horas que nos regem. Foi para tornar acessível ao público em geral a informação sobre esta temática que decidiu escrever o livro Mais Tempo de Vida.
“Como cientista, penso que é uma obrigação nossa combater a desinformação que há por aí”, diz, acrescentando que nesta inclui “as ordens de uma espécie de sargentos que resolveram dizer que todos temos de dormir oito horas, que não podemos ler num Kindle antes de ir para a cama ou que temos de partilhar um quarto com o nosso parceiro que ressona”.
O sono e os ritmos diários “variam muito de indivíduo para indivíduo. Emergem da nossa genética, fisiologia, comportamento e ambiente, e, se os entendermos, podemos viver melhor e mais tempo”, sublinha.
Mais Tempo de Vida, Russell Foster, Editorial Presença, 20,61€
Entrevista a Russel Foster
Em que consiste esta nova ciência do relógio biológico da qual fala no livro?
Tudo parte da descoberta dos mecanismos moleculares que controlam o ritmo circadiano, que valeu o Prémio Nobel da Medicina de 2017 a três cientistas norte-americanos e que mostrou como funcionam os genes que estão ligados ao sono e à forma como regulamos o nosso metabolismo nas diferentes fases do dia, ou seja, o que faz funcionar o nosso relógio biológico. Se pensarmos nos fundamentos da biologia, este é um dos aspetos mais importantes. A grande novidade é que está, agora, a ser aplicada à saúde.
E como é que isso está a acontecer?
Sabemos qual a melhor altura para fazer determinadas coisas. Por exemplo, para a vacinação. Um estudo demonstrou que a vacina da gripe é três vezes mais eficaz se for administrada de manhã do que se for à tarde. Mas há mais. No nosso ciclo de 24 horas também há alturas em que tomamos melhores decisões e em que as nossas capacidades cognitivas estão mais desenvolvidas. Um outro estudo concluiu que um cérebro cansado e que sofre de distúrbios de sono tende a lembrar as experiências negativas e a esquecer as positivas. Portanto, as pessoas cansadas de todo o mundo não estão capazes de tomar decisões.
Por que é que dormir é tão importante?
Durante muito tempo, as pessoas pensavam que dormir era apenas o desligar do cérebro, mas agora está claro que a qualidade do nosso sono define a qualidade do nosso acordar. Sabemos que quando dormimos consolidamos a memória e a capacidade de reter informação. Mas é mais importante do que isso; é fundamental também para o processamento da informação e das emoções. A privação de sono faz-nos ficar muito mais ansiosos e stressados. Além disso, é também durante o sono que eliminamos toxinas perigosas que se acumulam no cérebro.
Os distúrbios do sono estão associados a muitas doenças?
Absolutamente. Quando não dormimos o suficiente, as funções cerebrais, as emoções e a saúde física ficam comprometidas. Aumenta o risco de doenças cardiovasculares, diabete tipo 2, infeções e de doenças mentais. A perturbação do ritmo circadiano de sono altera os neurotransmissores e, como tal, aumenta a predisposição para a doença mental, além de piorar uma já existente e vice-versa.
O investigador Dan Freeman percebeu que a insónia aumenta o risco de paranoias, mas, estabilizando o sono e facultando acompanhamento com terapia comportamental, conseguiu-se reduzir os episódios nos jovens estudados. Outro aspeto que estamos a investigar é que, se estabilizarmos o sono da população, poderemos reduzir as comorbilidades na população mais velha, pois, à medida que envelhecemos, maiores são as taxas dos problemas acima mencionados.
A privação do sono está ligada às demências?
Não podemos dizer que a falta de sono cause demência, mas certamente que é um fator de risco. Uma só noite de privação de sono eleva os níveis de beta-amiloide no fluido cerebral, e aquela molécula está associada à doença de Alzheimer e à demência. Isto pode indicar que dormir mal e não descansar torna as pessoas mais vulneráveis à demência na velhice.
Há quem tenha um cronotipo matinal, noturno e intermédio. Como é que as pessoas sabem qual é o seu?
No final do livro temos um questionário que poderá ser muito útil. No entanto, convém saber que o cronotipo não é fixo e que tem três componentes essenciais. O primeiro é a genética e, sim, esta conta muito. O segundo é a idade. A partir dos 10 anos, a tendência é para se ir para a cama cada vez mais tarde, atingido o pico na década dos 20 anos. Tendencialmente, os homens também tendem a ir para a cama mais tarde do que as mulheres. Depois, muda-se para o cronotipo mais matutino a partir dos 50 e muitos.
Começa-se a ir para a cama às dez, onze ou meia-noite, o mais tardar. Esta mudança está correlacionada com o declínio de esteroides associado ao passar dos anos. O ponto essencial é que, em média, os jovens vão para a cama duas horas mais tarde do que uma pessoa de 60 anos, portanto, pedir a um adolescente que se levante às sete horas da manhã é como pedir a uma pessoa mais velha para se levantar às cinco da manhã. O terceiro, que é o menos falado, é a luz. A luz matinal faz-nos levantar mais cedo e ir para a cama também mais cedo. Se não vemos a luz matinal, deitamo-nos e levantamo-nos mais tarde.
Mas a luz é uma componente que podemos alterar…
Exato. Se alguém com um cronotipo noturno se expuser à luz matinal, vai conseguir regular o seu relógio biológico e começar a levantar-se mais cedo. Então num país como Portugal, é muito fácil, mesmo no inverno, pois tem muita luz. Quem vive na Escócia ou na Escandinávia deve expor-se a uma caixa de luz durante 30 minutos de manhã. Aquelas pessoas que dormem mais ao fim de semana e não veem a luz natural da manhã após uma semana de privação de sono, quando se levantam na segunda-feira, sentem-se ainda pior. A luz é crucial, regula o relógio biológico.
Fazer determinadas atividades no tempo certo é benéfico?
Sem dúvida. Sabemos, por exemplo, que fazer exercício de manhã pode ajudar a acertar o relógio com a luz. O relógio biológico principal está no nosso cérebro, mas todas as células do corpo têm um ritmo circadiano e são todos os relógios das nossas células que definem o sistema do nosso corpo. Em circunstâncias normais estão alinhados, mas, vejamos, quando comemos a desoras, estamos a modificar o nosso fígado e intestino, que, por sua vez, estão ligados ao relógio principal. Quando o cérebro está a fazer uma coisa e o resto do corpo está a fazer outra, o nosso organismo está desalinhado. É como se numa orquestra os músicos estivessem a tocar em tempos diferentes.
O que é para si saber viver?
Dormir bem e ter um ritmo circadiano alinhado. Nós pensamos que somos livres de fazer o que queremos na altura que desejamos, apesar da nossa bagagem biológica de milhares de anos, mas deveríamos deixar essa arrogância de lado e priorizar a nossa necessidade individual de dormir, de cuidar da nossa saúde, de ir ao ginásio, de estar com amigos e família, em vez de andar sempre a correr.