Todos os anos, a 30 de maio, é oficialmente celebrado o Dia Mundial da Esclerose Múltipla. Para 2020-2022 a temática em ordem são as conexões. Com o próprio, na comunidade, aos cuidados de qualidade. A ideia? Derrubar o isolamento social tão típico da patologia em causa.
Em Portugal, a esclerose múltipla afeta cerca de 8.000 pacientes, sendo duas vezes mais prevalente nas mulheres do que nos homens. Surge habitualmente entre a segunda e a terceira década de vida.
O desconhecimento envolvente – de que falámos no início – só dificulta o diagnóstico e o tratamento atempado. Não é fatal, mas é muito incapacitante e influencia fortemente as várias áreas de vida do paciente afetado.
Para compreendermos em pleno esta doença, recorremos a um especialista: Manuel Gonçalves, neurologista no Hospital CUF Infante Santo, que nos ajudou neste processo sinuoso de conhecer o que gostaríamos de nunca vivenciar.
Quando o corpo é o próprio inimigo
A esclerose múltipla é uma doença neurológica crónica que afeta o sistema nervoso central, sendo de evolução progressiva. É mais comum no jovem adulto, pelo que tem maior incidência e prevalência no sexo feminino.
Na comunidade médica, tem sido contemplada como uma patologia autoimune, onde o sistema imunológico do corpo ataca os próprios tecidos. Isto é, o organismo produz anticorpos que causam dano nas células do próprio.
A explicação científica? “As fibras nervosas das células do sistema nervoso estão revestidas por uma bainha chamada mielina que é essencial para que os estímulos sejam transmitidos”, introduz Manuel Gonçalves.
“Na esclerose múltipla a mielina é destruída, alterando assim a comunicação entre o cérebro e o corpo”, continua explicando que “o processo inflamatório que ocorre nesta doença causa dano permanente dos neurónios, podendo originar perda de diversas funções”.
Relativamente a causas, para além de saber tratar-se de uma doença autoimune, compreendem-se que os mecanismos envolvidos serão mais abrangentes, envolvendo fatores:
• Genéticos. Dois tipos de estudos: os que relacionam uma maior incidência de novos casos em familiares de doentes, como pais ou irmãos, e os que destacam a maior prevalência na Europa Ocidental, EUA, Austrália e Nova Zelândia, sendo que acompanhou a expansão global dos povos nórdicos e anglo-saxónicos na sua fixação noutros locais do globo.
• Hormonais. Pela prevalência no sexo feminino.
• Ambientais e/ou virais. Um indivíduo nascido em regiões tropicais, de baixa prevalência, mantém essa baixa probabilidade se mudar para uma região de alta prevalência na adolescência ou depois, mas não se essa mudança ocorrer numa fase muito precoce da vida, vindo a adquirir uma probabilidade semelhante à dos naturais da região.
Como reconhecer os sinais
Manuel Gonçalves fala-nos primeiramente em “surto”, uma situação em que aparecem e persistem novos sinais ou sintomas por um período de 24 horas.
Esta ocorrência está relacionada com a perda de mielina (placa de inflamação) e os sintomas dependem da zona afetada. Ou seja, “o sintoma está sempre relacionado com a localização anatómica no sistema nervoso da placa de inflamação com perda de mielina”.
Assim, alguns destes sintomas podem ser:
- Défices sensitivos (perda de sensibilidade ou formigueiros que começam numa extremidade e se vão estendendo a todo o membro);
- Défices motores;
- Dificuldade na marcha;
- Alterações do equilíbrio;
- Vertigem;
- Alterações visuais;
- Alterações da fala;
- Tremor;
- Alterações esfincterianas;
- Entre outros.
Estes sintomas geralmente perdem intensidade ao fim de alguns dias, mas levam à acumulação de lesões. “Com o passar dos anos, no entanto, a doença sofre uma modificação e passa a ser progressiva, com caráter neurodegenerativo”
Constituem-se quatro tipos:
- Forma recidivante-remitente. Ocorrem surtos que duram entre dias a semanas, seguidos de uma recuperação;
- Forma secundariamente progressiva. Na qual os défices se vão acumulando após cada surto;
- Forma primariamente progressiva. Que evolui desde o início sem separação entre surtos e períodos sem surtos;
- Forma remitente-progressiva. Em que a doença progride de modo evidente desde o início, mas podendo ocorrer períodos livres de sintomas.
O contacto com a medicina
No que concerne ao diagnóstico, feito perante uma fundada suspeita clínica, muito devido aos sinais já enumerados, destacam-se os exames:
- Imagiológicos (ressonância magnética);
- Neurofisiológicos (potenciais evocados);
- Laboratoriais (nomeadamente estudos do líquido céfalo-raquidiano);
- Outros em situações especiais.
Apesar de não existir uma cura para a esclerose múltipla, como já foi referido, a terapêutica disponível hoje em dia é muito completa e abrange quase todos os aspetos da doença.
Nas fases agudas dos tais surto utilizam-se fármacos como corticoides para controlar a ação e extensão do processo inflamatório.
Depois, com o objetivo de mudar o curso da doença, podem ser usadas abordagens diferentes, sendo a abordagem mais clássica aquela onde são utilizados fármacos menos eficazes mas mais seguros.
Relativamente aos fármacos, estes também apresentam características distintas, com diferentes vias (parentéricas e orais) e formas (contínuas ou intermitentes) de administração.
“O processo de escolha do fármaco é, hoje em dia, aberto à discussão com o doente, tendo em conta as especificidades deste quer na forma e gravidade da doença quer no que respeita ao seu estilo de vida, profissão e vontade”, declara prontamente o médico.
O objetivo final em cada tratamento será atingir um nível em que o doente fique livre de surtos e/ou de progressão da doença por mais dois anos.
Já no controlo das sequelas “podem ser usados antiespásticos, estimulantes do sistema nervoso central (para controlo da fadiga), antidepressivos, medicamentos para controlo da dor neuropática e para controlo esfincteriano”, explica pormenorizadamente o Manuel Gonçalves.
Por fim, indica-nos ainda que “a medicina física e de reabilitação tem igualmente um papel fundamental no processo de recuperação da função motora e do equilíbrio após um surto agudo”.
O futuro e os planos da mulher jovem
Havendo uma maior prevalência no sexo feminino, procurámos perceber qual o impacto na vida diária da mulher jovem ou mesmo nos seus planos futuros, por exemplo, o desejo de ser mãe.
“O impacto é muito variável e depende da forma da doença, da gravidade na fase de apresentação e das sequelas que se estabeleçam”, começa por indicar o neurologista.
E continua: “Atualmente, devido ao diagnóstico precoce e às múltiplas formas de intervenção terapêutica, a maioria dos doentes (fora dos surtos) tem uma vida muito próxima do normal, sem condicionantes que os penalizem de forma relevante”.
Neste sentido, Manuel Gonçalves indica-nos que geralmente a possibilidade de engravidar não está afetada nem esta função natural deve ser restringida.
No entanto e, perante o diagnóstico inicial “existe o objetivo de tentar uma estabilização da doença antes da gravidez, o que deve ser estabelecido de acordo com a doente”.
Embora alguns fármacos sejam seguros na gravidez, outros são contraindicados, devendo ser interrompidos ou substituídos de forma atempada.
“Apesar de tudo, é hoje de consenso geral que a gravidez planeada não terá qualquer problema ou impacto futuro na doença e na mulher”, conclui com segurança o médico.
E a esperança média de vida?
Se até há alguns anos estaria diminuída em relação à população geral, “hoje em dia e com os novos tratamentos essa tendência alterou-se, podendo esperar-se para a maioria destes doentes uma esperança média de vida dentro do normal para a população”.
Em relação à prevenção, apesar de não se conhecer uma forma de prevenir a esclerose múltipla, o neurologista recomenda um estilo de vida saudável, a suplementação vitamínica – muito ao nível da vitamina D – e o controlo do stresse físico e psíquico.
Acrescenta também que “as diferentes associações de doentes têm um papel muito importante na dinamização do conhecimento e da interação e entreajuda de toda a comunidade envolvida”.
Confiar na evolução da ciência
Pelo que nos explica Manuel Gonçalves, até aos anos 90 este era um diagnóstico demasiado pesaroso para o doente e para a família, com um desfecho que cateteriza como “complexo”.
Muitas vezes, “estes mesmos diagnósticos eram tardios, e a ausência de opções válidas de tratamento permitiam que os défices motores, sensoriais e cognitivos se instalassem, determinando uma incapacidade significativa”.
Hoje em dia é diferente. Com o avanço da medicina, existem diferentes fármacos com distintos mecanismos de ação e eficácia comprovada que “aumentam de forma exponencial o leque de ações terapêuticas”.
Deste modo, é também possível um diagnóstico e intervenção terapêutica em fases muito precoces da doença, com um objetivo para muitos destes doentes de um estado de não atividade da doença – NEDA (“no evidence of disease activity”).
“De facto, nos últimos 20 anos a área das doenças desmielinizantes é talvez a que mais tem evoluído nas neurociências”, alude o médico num tom positivo.
O momento que se vive e a esclerose múltipla
Depois desta mensagem de esperança deixada a doentes, familiares e comunidade envolvente, o médico não se despede sem antes fazer alusão à situação pandémica atual.
Segundo Manuel Gonçalves, a clausura forçada que se viveu em Portugal e no resto do mundo levou “muitos doentes, apesar da suspeita de quadros de patologia agudos ou de agravamento de doenças preexistentes, a evitar recorrer à ajuda médica especializada por receio das condições sanitárias gerais”.
Ora, para o neurologista, trata-se de uma atitude errada, pelo que, no caso especifico dos doentes com esclerose múltipla, não deve haver qualquer receio de contactar o médico assistente ou o serviço hospitalar onde é acompanhado.
Uma vez que “desde cedo ficaram reunidas todas as condições de segurança, omitir uma ocorrência aguda poderia causar um défice importante para o futuro”. Agora sim, despede-se com a sensação de dever cumprido.