“Quando tenho aura, consigo tomar alguma coisa e evitar que a dor seja tão intensa, mas, quando acordo já com a enxaqueca não há muito a fazer. Tento comer alguma coisa para tomar a medicação, mas, com os vómitos, tudo o que eu possa tomar não faz efeito.” O testemunho é de Ana Cristina Joaquim, professora de 56 anos, mas é comum a quem sofre de enxaquecas.
A doença lidera os motivos da procura de uma consulta de Neurologia e está associada a níveis elevados de absentismo laboral. Mas do que falamos quando falamos de enxaqueca? Ana Valverde, coordenadora de Neurologia do Hospital CUF Descobertas, explica: “É um distúrbio neurológico que se manifesta por cefaleia intensa e muitas vezes incapacitante”. São as mulheres as mais afetadas, com uma prevalência da patologia de 15% a 20%, contra 5% a 8% em homens.
A enxaqueca é a sexta patologia mais prevalente no mundo e a segunda principal causa de incapacidade. “Na Europa, tanto as mulheres como os homens que sofrem de enxaqueca perdem, em média, um dia de trabalho por mês por absentismo ou por perda de produtividade”, afirma Ana Valverde
O papel da genética
Ana Joaquim tem enxaquecas desde a adolescência. “Começaram depois da primeira menstruação”, recorda. Desde então as crises tornaram-se parte integrante da sua vida, tendo diminuído de frequência e intensidade durante a gravidez para regressarem depois. Na menopausa, tornaram-se mais espaçadas, mas persistem.
E não é a única na família a padecer deste mal; tias, primas, um primo e uma das filhas também são afetados. A componente genética é uma das características da doença. “Os estudos do genoma identificaram marcadores genéticos associados à enxaqueca. São conhecidas três mutações associadas a um tipo específico de enxaqueca, contudo, mesmo neste grupo, 30% dos doentes não têm mutações genéticas conhecidas”, refere Ana Valverde.
“O cérebro das pessoas que sofrem de enxaqueca apresenta uma maior sensibilidade a estímulos luminosos, auditivos ou sensitivos, não apenas durante as crises, mas também em períodos intercrises, com hiperexcitabilidade ou resposta exagerada aos mesmos. Certos estímulos, num cérebro mais suscetível, podem provocar mudanças nas células e desencadear crises de enxaqueca”, continua a médica.
Sintomas premonitórios
A ‘aura’ referida por Ana Joaquim é outra das manifestações associadas à enxaqueca, que provoca alterações visuais, sensitivas ou da fala. As enxaquecas com aura representam entre 15% e 30% dos casos, sendo a mais comum a aura visual . “Habitualmente apresenta-se como uma figura convexa em ziguezague, que aumenta, até produzir uma zona de perda de visão”, refere a neurologista. Podem também surgir sintomas sensitivos como formigueiros e alterações da fala. “Em mais de metade dos doentes, a enxaqueca costuma provocar sintomas premonitórios”, diz a médica.
Bocejar, apetência por determinados alimentos, voracidade, mudanças de humor e retenção de líquidos ou perda de apetite, cansaço, diurese, sonolência e fonofobia podem ser indicadores de uma crise. Quando está instalada, são as cefaleias de intensidade grave a moderada – que começam por afetar apenas um lado da cabeça – o principal sintoma.
Não se trata de uma simples ‘dor de cabeça’: em 80% dos casos, a cefaleia é acompanhada de náuseas, vómitos e hipersensibilidade à luz e aos sons altos, num quadro que dificulta ou impossibilita ações como caminhar, subir escadas ou mexer a cabeça.
É possível prevenir?
Os fatores que podem desencadear uma crise de enxaqueca mudam de pessoa para pessoa, no entanto, há cinco que são comuns à maioria dos casos: stresse, jejum, mudanças atmosféricas, fatores relacionados com o sono e mudanças hormonais. “Anualmente, em cerca de 3% dos doentes, a enxaqueca torna-se crónica, provocando cefaleia pelo menos 15 dias por mês, oito dos quais com crises de enxaqueca”, alerta Ana Valverde.
O mais recente medicamento para a prevenção das crises de enxaqueca é um anticorpo monoclonal humanizado e chegou ao mercado em 2021, com resultados animadores. “A resposta inicia-se logo na primeira semana de tratamento, reduzindo significativamente a média mensal de dias com enxaqueca – em cerca de um terço dos doentes há uma redução de mais de metade dos dias”, explica a neurologista.
Indicado para a prevenção da enxaqueca episódica e crónica, destina-se a doentes que não responderam a, pelo menos, dois tratamentos anteriores e é administrado de forma subcutânea, mensalmente ou trimestralmente. O tratamento, que está contraindicado durante a gravidez e período de aleitamento, em doentes com antecedentes de AVC ou cardiopatia isquémica, dura entre seis e 12 meses.
Além deste medicamento, surgiram outros tratamentos inovadores. É o caso dos bloqueios anestésicos, com o bloqueio do nervo occipital maior, que “é eficaz como tratamento sintomático da crise aguda de enxaqueca; dos dispositivos neuromoduladores utilizados nos casos em que a enxaqueca está relacionada com o aumento de peso e epilepsia e que atuam no tratamento das cefaleias resistentes ao tratamento farmacológico ou da toxina botulínica tipo A, que, em ensaios clínicos controlados, se tem revelado eficaz como método preventivo da enxaqueca crónica.
“Entre as técnicas não invasivas destacam-se a neuromodulação do nervo supraorbitário ou a estimulação do nervo vago para tratamento dos sintomas da crise de enxaqueca e prevenção da enxaqueca episódica”, revela ainda a neurologista.