“Tenho de me concentrar na minha saúde mental e não pôr em risco a minha saúde e bem-estar.” Foi com esta frase que a ginasta Simone Biles justificou a ausência de várias finais do concurso de ginástica artística dos Jogos Olímpicos de Tóquio.
As palavras da atleta surpreenderam o mundo, sobretudo, porque até esse momento, a maior ginasta de todos os tempos era apontada como uma das figuras da competição. E foi, não pelas medalhas que levou para casa como seria esperado – mesmo assim levou duas –, mas por ter assumido que estava com um bloqueio mental e que, por isso, não tinha noção do próprio corpo quando estava no ar e isso punha em perigo a sua integridade física.
Com esta atitude, Simone Biles relançou a discussão sobre saúde mental dos atletas e a pressão a questão sujeitos. Este é, aliás, um tema que já tinha sido abordado há alguns anos quando o nadador Michael Phelps, o atleta com mais títulos olímpicos conquistados, confessou sofrer de ansiedade e de depressão e, mais recentemente, quando a tenista Naomi Osaki, número três mundial, admitiu que tem tido sucessivos estados depressivos desde 2018.
Em Portugal, o caso mais conhecido é o do judoca Célio Dias, que, após a derrota nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, entrou em depressão, tendo-lhe sido, depois, diagnosticada esquizofrenia. Hoje, é um ativista pela saúde mental.
Outro caso trazido a público em Tóquio foi o da nadadora Diana Durães, que revelou sofrer de distúrbios alimentares há mais de um ano.
A saúde mental é tão importante como a física, e sem a primeira a segunda fica comprometida
Bem-estar total
A saúde psicológica é definida pela Organização Mundial da Saúde como um estado de bem-estar que permite às pessoas concretizar as suas capacidades e potencial, lidar com o stresse expectável do dia a dia, trabalhar produtivamente e contribuir ativamente para a sua comunidade.
A saúde mental é, por isso, tão importante como a física, e sem a primeira a segunda fica comprometida, no entanto, continua a ser relegada para segundo plano.
A psicóloga Filipa Jardim da Silva acredita que isso acontece, porque, “de uma forma global, a forma como a saúde e os sistemas de saúde estão construídos tende a silenciar as questões da saúde mental, ainda há um mindset mais reativo do que preventivo e ainda temos um modelo de formação médico que não dá muita importância à saúde psicológica”.
Portanto, o estigma persiste, se bem que, em consequência da pandemia, este tema tenha passado para a ordem do dia. A psicóloga garante que, “tal como aprendemos a lavar os dentes e a tomar banho, deveriam ensinar-nos desde cedo o conceito de higiene psicológica, isso poderia evitar muitos problemas”.
Higiene mental
Tão importante como a física, a chamada higiene psicológica pode fazer toda a diferença na sua vida. É uma espécie de treino que nos vai assegurando a flexibilidade mental e a capacidade de lidar com os problemas psicológicos. Filipa Jardim da Silva diz-nos como a fazer:
- Dedique breves instantes diariamente para se auto-observar, perceber como estão corpo, emoções e pensamentos. Desta forma, treina o músculo da atenção para perceber o que se passa consigo.
- Escreva um registo diário, de forma livre ou estruturada. Esta última pode ser, por exemplo, em forma de resposta a algumas perguntas.
- De hora a hora, dedique um minuto à respiração abdominal e pode ser simultânea com outra tarefa que esteja a desempenhar, por exemplo quando anda de elevador.
- Dê nome às suas emoções.
- Pratique a compaixão e empatia por si e pelos outros em vez de criticar e julgar. Não há verdades absolutas.
Crise pré-pandémica
Não se pense, no entanto, que esta crise de saúde mental surgiu no contexto pandémico. “Há marcadores concretos, tanto a nível mundial como nacional, que mostram como a incidência dos problemas psicológicos estão a crescer há largos anos. Portugal está no top três ou quatro dos países do mundo que mais tomam psicofármacos (ansiolíticos e antidepressivos) e isto é revelador do estado da saúde mental”, realça Filipa Jardim da Silva.
O que aconteceu foi que a pandemia, continua a psicóloga, “pelas suas condições de exigência, exacerbou a vulnerabilidade de toda a gente. É uma situação pautada por tudo aquilo que o ser humano considera mais desafiante, ou seja, imprevisibilidade, perigo e impotência”.
“O confinamento, o teletrabalho, a não frequência escolar, o ficar privado de contactos sociais, a incerteza, o luto, a angústia, tudo isto teve um impacto na saúde psicológica das pessoas de todas as idades”, acrescenta Renata Benavente, psicóloga e vice-presidente da Ordem dos Psicólogos.
Foi, como diz Filipa Jardim da Silva, “um tsunami de emoções e quem já estava vulnerável, tinha fatores de ricos acumulados e não tinha práticas de auto-observação, de autocuidado, de autoconhecimento e capacidade de regular as emoções foi quem mais sofreu”.
Resposta precisa-se
No meio de tudo isso, a boa notícia é que os pedidos de ajuda relacionados com sofrimento emocional e saúde psicológica aumentaram, combatendo a vergonha de se falar sobre este tema. No entanto, a resposta a nível do Sistema Nacional de Saúde (SNS) é deficitária, apesar de, no início da atual legislatura governamental a saúde mental ter sido considerada prioritária.
“Se já tínhamos dificuldade em dar resposta a todas as solicitações pré-pandemia, agora, ainda mais. Os tempos de espera para a primeira consulta são desadequados, rondam os seis meses. Isso só faz com que os sintomas se agravem e irá refletir-se em todas as áreas da vida da pessoa, ou seja, na dinâmica familiar, social e no desempenho laboral. A saúde psicológica diz respeito à forma como pensamos, sentimos, avaliamos as situações, nos relacionamos com os outros e tomamos decisões”, explica Renata Benavente.
A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos revela que o SNS tem cerca de mil psicólogos, divididos entre cuidados de saúde primários, hospitais e área das dependências. “Somos 250 psicólogos nos centros de saúde, é manifestamente pouco para uma população de dez milhões e agrava as desigualdades sociais entre quem pode recorrer ao privado e quem não pode”, diz.
Ansiedade e depressão
Na Rumo, uma plataforma online de psicólogos fundada por Francisco Valente Gonçalves e Carolina Oliveira Borges, iniciada para apoiar psicologicamente estudantes portugueses no estrangeiro, a covid-19 trouxe novos desafios.
“Quando pandemia rebentou, percebemos que tínhamos de abrir as consultas a toda a gente, respondendo aos pedidos que tínhamos até já antes da covid-19”, diz Francisco Valente Gonçalves. “As pessoas de repente tiveram tempo para pensar em si, muitas estavam sozinhas e tiveram a capacidade de pedir ajuda profissional. Ter um amigo com quem falar é muito importante, mas um psicólogo está treinado para acolher a dor e o sofrimento, dar espaço para que a pessoa possa sofrer em segurança e, depois, reorganizar esse conteúdo que está a criar tristeza”, frisa o fundador da Rumo.
As queixas mais frequentes “prendem-se com situações de ansiedade e depressão. Já era assim antes da pandemia e tem-se acentuado. Depois, há também as questões do isolamento. Nem todas as pessoas se conseguiram adaptar às novas tecnologias e outras há que precisam do toque, do beijo, do abraço. A solidão aumentou muito nos idosos, que ficaram muito isolados, não só da família, mas também se viram privados de alguns serviços que eram fonte de satisfação e contribuíam para a diminuição do declínio cognitivo, como os centros de dia, e as universidades seniores”, realça Renata Benavente.
Os ataques de pânico, fobias, perturbações obsessivo-compulsiva e bipolar, distúrbios alimentares e adições são os outros problemas do foro psicológico e todos têm diferentes graus de gravidade, tal como as já mencionadas e mais comuns ansiedade e depressão.
O reino das emoções
Outro fator que tem contribuído para o agravamento da saúde psicológica é a pressão para se ser feliz, ter sucesso e não errar, uma positividade tóxica que vive muito a reboque das redes sociais.
Convém frisar que todas as emoções são saudáveis e que é normal sentirmo-nos tristes, zangados, e que a alegria e a felicidade não são uma constante na vida de ninguém. Aliás, como refere Filipa Jardim da Silva, “a felicidade irreal é um gatilho para a doença mental”.
Já a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos assegura que “o culto da felicidade e do bem-estar, que passa a mensagem de que todos temos de estar bem, felizes e bonitos, não é mais do que um discurso desajustado da realidade. A pressão para estarmos felizes agrava a insatisfação que podemos ter e que é legítima. O que as pessoas têm de perceber é que sentimentos como tristeza, depressão e sofrimento fazem parte da nossa existência”.
Para Filipa Jardim da Silva, “quererem fazer-nos acreditar que é possível uma vida sem desconforto e que isso é desejável é um erro. Precisamos tanto de prazer como de tolerar algum desconforto, precisamos tanto de alegria como de zanga e de medo. O nosso trabalho não é calar as emoções nem fugir delas. A base da nossa saúde física e mental é reconhecer o que estamos a sentir, dar-lhe um nome, permitir sentir o que estamos a sentir e, depois, fazer o que está ao nosso alcance para regular a intensidade dessa emoção”.
Nenhuma emoção nos faz adoecer. “O que transforma uma emoção em perturbação é a intensidade excessiva e desmesurada ou uma frequência demasiado elevada da mesma emoção. Essa é a diferença entre sentir medo e ansiedade de forma adaptativa e desenvolver uma perturbação de ansiedade generalizada ou fobia”, garante Filipa Jardim da Silva.
É aí que entra a ajuda profissional, que pode ser na área da Psiquiatria ou da Psicologia em separado, ou uma combinação das duas.
Não se esqueça de que sem saúde mental a vida parece mais difícil de gerir, enquanto que, se tiver bem psicologicamente, será capaz de enfrentar os problemas que possam surgir.