Saúde mental na segunda vaga: como combater a ansiedade do novo confinamento
O País voltou a confinar, vários estabelecimentos voltaram a ter horário de funcionamento reduzido e vários portugueses voltaram ao teletrabalho. A saúde mental volta a estar na ordem do dia, e ainda bem que assim o é.
Voltámos a enfrentar uma série de medidas restritivas à rotina do dia a dia, depois de um verão com mais liberdade (dentro dos possíveis), mas nem todos lidámos bem com isto.
Ainda que o novo confinamento nada tenha tido a ver com a quarentena a que os portugueses, e o resto da Europa, estiveram sujeitos em março, voltámos a dar o passo atrás para que pudéssemos dar outros em frente.
O teletrabalho foi novamente imposto, centenas de concelhos ficaram sob o recolher obrigatório e setores como a restauração e a hotelaria voltaram a ver os seus negócios desflorescer.
A nível de saúde mental, como é que os portugueses lidaram com esta nova vaga? Fomos tentar perceber.
A pandemia e a ajuda psicológica
Os dados falam por si. Nos primeiros três meses do ano, em Portugal, foram vendidas mais 400 mil embalagens de ansiolíticos e antidepressivos do que no mesmo período em 2019. Hoje, Portugal é o quinto país da OCDE que mais consome este tipo de medicação e, ainda que não esteja confirmado, as probabilidades de que a pandemia tenha vindo a aumentar este número são bastante elevadas.
“Os pedidos de ajuda psicológica têm vindo a crescer de forma exponencial à medida que a própria população tem vindo a reconhecer o impacto emocional negativo da pandemia. Estamos a vivenciar um período de perdas, desde a perda da liberdade à perda da sensação de segurança e de controlo – fatores importantes para o bem-estar dos seres humanos”, diz-nos Sofia Gabriel, psicóloga clínica na MIND, Instituto de Psicologia Clínica e Forense, onde coordena a Consulta de Apoio ao Luto.
“A maioria de nós foi invadido pelo medo. O medo do contágio, da transmissão para terceiros e de perder pessoas próximas. E, infelizmente, a pandemia não nos recordou apenas da finitude da vida e das nossas fragilidades como seres humanos, como levou muitas pessoas importantes das nossas vidas – imprescindíveis para a felicidade.”
Os pilares do nosso bem-estar foram postos em causa e foram os milhares de portugueses que se viram a ficar sem emprego, a perder quem mais amam e a ter a liberdade condicionada. Além disto, o medo de ser infetado pelo vírus contribuiu também para o medo de viver.
Num estudo feito pela MIND, publicado em abril de 2020, relativo aos efeitos precoces da pandemia, foi possível perceber quais foram as maiores queixas que os portugueses apresentavam a nível psicológico e emocional. É de referir que o estudo realizou-se numa fase precoce, em que o número de mortes e casos positivos não tinha atingido os números atuais.
Ainda assim, a psicóloga, refere que quase metade da amostra referiu sentir um impacto psicológico “moderado a severo”.
“Destaca-se o medo do desconhecido, associado a uma das principais queixas – a ansiedade. Este medo, para além de provocar ansiedade em pessoas consideradas saudáveis, aqueles com problemas de saúde mental pré-existentes, encontram-se em particular risco. Tome-se como exemplo pessoas com Perturbação Obsessivo-Compulsiva que, com medo da contaminação, já tinham comportamentos repetitivos de higienização. O mesmo se aplica às pessoas hipocondríacas, as quais apontam vivenciar um enorme pânico, perante qualquer potencial sintoma da presença do vírus”, diz-nos Sofia Gabriel.
Além disso, destacam-se também queixas associadas à sintomatologia depressiva:
- Desmotivação;
- Choro frequente;
- Sensação de vazio;
- Desesperança em relação ao futuro;
- Sensação de perda;
- Tristeza;
- Angústia;
- Aumento do consumo de substâncias;
- Dependência da Internet.
Foi ainda registado neste estudo que o género feminino vivenciou um maior impacto psicológico da pandemia, desenvolvendo maiores níveis de depressão, ansiedade e stresse.
Relativamente às faixas etárias, os adolescentes apresentam um risco elevado de desenvolverem, neste contexto pandémico, sintomas de ansiedade, depressão, perturbações alimentares.
“Uma investigação de uma organização não-governamental designada YoungMinds, do Reino Unido, demonstrou que o impacto da pandemia na saúde mental dos jovens se encontra associada a consequências como ansiedade, dificuldades no sono, ataques de pânico e recurso a comportamentos autolesivos, como a automutilação”, refere a psicóloga.
O impacto psicológico que a segunda vaga pode ter
“Com este segundo confinamento, a saúde mental torna-se novamente prioridade e recorda-nos das nossas fragilidades, enquanto seres humanos”, relembra Sofia Gabriel.
Como referimos anteriormente, ainda que o confinamento da segunda vaga não seja igual à quarentena imposta em março, os sentimentos de tristeza, solidão e sensação de vazia podem voltar a ser reativados.”
“Esta reativação pode ser facilitada por sentimentos de desmotivação, zanga e revolta por um novo período de confinamento em que as pessoas já têm conhecimento das dificuldades vivenciadas no confinamento anterior. Por outras palavras, pode ser particularmente difícil investir no autocuidado e em estratégias facilitadoras do bem-estar, exatamente pelo cansaço, frustração e desejo crescente de retomar a normalidade e, por sua vez, a proximidade física, o toque, os importantes abraços e afetos imprescindíveis para o bem-estar”.
Mas não fica por aqui. A especialista recorda ainda que uma sociedade com um défice na saúde mental corre o risco de perturbações mentais elevadíssimo, como é o caso da ansiedade, depressão, stresse pós-traumático e ideação suicida. Porém, há estratégias a adotar que podem reduzir os estados ansiosos.
Os passos a dar para uma saúde mental mais equilibrada
“Em primeiro lugar, destaca-se imediatamente o autocuidado. Por autocuidado entende-se todo o conjunto de tarefas ou atividades que promovem o bem-estar, como por exemplo o exercício físico, ioga, cozinhar, ouvir música, ver um filme”, começa por dizer a especialista.
“Em segundo, destaca-se a necessidade imperativa de recorrer a ajuda psicológica quando a pessoa sente que não tem ferramentas emocionais para gerir o que está a sentir. Pedir ajuda especializada deve tornar-se prioridade”, alerta.
Manter a motivação diária e reduzir a tendência à procrastinação deverão ser dois objetivos essenciais para quem está neste momento em teletrabalho. Definir horários, cumpri-los, ter um espaço exclusivo para o trabalho e desligar do digital assim que o trabalho terminar são regras imprescindíveis para quem está a trabalhar em casa.
Relativamente ao nível emocional e social, é importante encontrar canais de apoio, que ajudem a combater a solidão e promovam o apoio e afeto, seja de família ou amigos.
“Num contexto pandémico, destaca-se o recurso às redes sociais como forma de alcançar suporte social, as quais tendem a colmatar a sensação de solidão e a facilitar a partilha de estratégias para gerir as dificuldades vividas, não raras vezes, comuns. Torna-se importante recordar que o distanciamento é físico e não social, ou seja, é fundamental promover o contacto, por exemplo, com recurso a videochamadas”, aconselha Sofia Gabriel.
É ainda recomendado que recorra a momentos de reflexão e autoanálise. “É fundamental que cada um de nós reconheça as suas fragilidades, mas também as potencialidades, isto é, quais as ferramentas e recursos de superação e resolução de problemas que temos no nosso reportório/usámos no passado e funcionaram”, recomenda a especialista.
“Apesar do impacto emocional negativo desta experiência, esta proporcionou o aumento do nosso autoconhecimento: conhecemos as nossas fragilidades e as nossas forças. É igualmente importante priorizar as mudanças que temos de implementar para o bem-estar e distinguir o que depende realmente de nós próprios, atenuando o risco de sermos invadidos por sentimentos de impotência, culpa e autodesvalorização”.
Mais uma vez, se sentir que estas estratégias não resultam, deverá recorrer a uma ajuda especializada.
A vacina e a esperança de um futuro melhor
A 27 de dezembro Portugal iniciou o processo de vacinação aos profissionais de saúde, entrando assim na primeira fase de combate à Covid-19. Pode este processo ter um impacto positivo na saúde mental dos portugueses?
“O impacto positivo que esta notícia pode ter na saúde mental da população prende-se com as expectativas do retomar da normalidade e do bem-estar, providenciando alguma esperança e, por oposição, atenuando algum pessimismo ou sensação de desesperança em relação ao futuro. Não obstante, é muito importante que as pessoas se mantenham realistas e que não desvalorizem as medidas de segurança a implementar no quotidiano. Claro que estamos cansados. Mas não podemos desistir”, assegura a psicóloga.
O surgimento da vacina acontece num momento a que a Ordem dos Psicólogos Portugueses enfatizou como Fadiga da Pandemia, ou seja “os sentimentos de cansaço relativos a todas as restrições impostas na nossa vida e uma enorme sensação de sobrecarga, dado o estado de vigilância em que nos encontramos todos os dias – desde a necessidade de manter o distanciamento físico, a higienização das mãos, o controlo da temperatura, a atenção a potenciais sintomas.”
Ainda assim, a notícia da vacina pode, eventualmente, trazer esperança a lares, por exemplo, onde a tristeza e o medo prevalecem.
Além de todos os recursos que pode aplicar no dia a dia para uma saúde mental mais estável, pode e deve recorrer à Linha de Apoio de Aconselhamento Psicológico do SNS 24 (808 24 24 24), caso seja necessário.
“Foi uma brilhante iniciativa e que tem vindo a atender milhares de chamadas e, por isso, a cumprir com o objetivo proposto – a prevenção e promoção da saúde mental. Esta iniciativa é representativa dos esforços para dar resposta à procura de ajuda e deve ser valorizada”, defende Sofia Gabriel.
Com a pandemia, a saúde mental voltou a ser debatida, pela sua pertinência no bem-estar de cada ser humano. Será que está, finalmente, a ser levada a sério? “O processo de valorização da saúde mental, ao longo dos anos, ainda que um processo lento, facilitou que, no contexto pandémico atual, as pessoas pedissem ajuda, sendo que, para a maioria das pessoas, nunca foram vividos períodos tão atípicos e difíceis, e, para outras, com perdas reais e simbólicas, foi impossível retomar o funcionamento e bem-estar do passado, ‘a vida como a conhecíamos’”, remata a especialista.