Discrepância do desejo sexual: será o fim da relação?
O que acontece quando, numa relação, uma das pessoas continua com a chama da paixão e do desejo bem acesa, mas a outra não?
A discrepância de desejo sexual num casal pode afetar profundamente a sua relação, ainda que, obviamente, a intimidade sexual seja apenas um dos ingredientes necessários para um compromisso duradouro entre duas pessoas.
Segundo a psicóloga e terapeuta de casal Sílvia Coutinho, com quem conversámos, a sexualidade faz parte do mecanismo de vinculação entre adultos e tende a ser mais intensa no início do relacionamento, quando o vínculo ainda não está totalmente consolidado. Com o tempo, à medida que este se estabiliza, o sexo pode deixar de ser uma prioridade, e é aqui que pode surgir um grande desafio para o futuro do casal.
Diferenças no desejo sexual: porque acontece e soluções
O que é a discrepância do desejo sexual?
A discrepância do desejo sexual nas relações de intimidade é uma das queixas mais comuns em terapia de casal. Esta ocorre quando um dos elementos do casal experiencia mais desejo do que o outro elemento, e é considerada uma experiência comum em muitas relações, nomeadamente de longa duração, nem sempre considerada patológica ou indicativa do estado da relação. Também os casais felizes enfrentam discrepâncias no desejo sexual.
O que leva a esta diferença no desejo?
Muitas vezes a literatura descreve o desgaste do erotismo como uma das causas. Contudo, julgo ser importante compreender melhor como funciona o nosso cérebro, que é considerado um dos maiores órgãos sexuais que temos.
É Emily Nagoski que nos fala no modelo dual da sexualidade. No fundo, é como se existissem dois pedais no nosso cérebro: um pedal da excitação, que se refere a tudo aquilo que nos liga, impulsiona e ativa para o sexo (por exemplo, passar por uma rapariga bonita, uma lingerie atraente, um toque ou olhar maroto, etc) e o pedal do travão, que corresponde a tudo o que nos possa travar ou resfriar para a ligação sexual (como por exemplo, ter vivido uma situação traumática, o stress do trabalho, as preocupações com os filhos, a sobrecarga mental com as tarefas domésticas de um dos elementos do casal, a perceção de desconexão, o sentimento de solidão, desamparo, abandono numa relação, etc).
Neste sentido, poderá ser importante o casal observar e analisar o que está a carregar no pedal da ação e o que está a pesar no pedal do travão, o desequilíbrio que poderá estar a acontecer num e noutro lugar e a conduzir a uma indisponibilidade e consequente diminuição do desejo.
Afeta o sexo masculino e o sexo feminino de igual forma?
A discrepância do desejo sexual poderá acontecer tanto a homens como a mulheres. Contudo, poderá eventualmente existir uma ligeira diferença entre homens e mulheres, nomeadamente como estes se ligam e disponibilizam para o desejo e sexualidade.
Por vezes, poderá ser mais frequente encontrar lentes um tanto ou quanto diferentes entre ambos: para alguns homens é comum estes percecionarem a intimidade sexual como uma forma de ativarem a intimidade emocional (“o sexo conecta-nos emocionalmente”) e para algumas mulheres a necessidade de se sentirem ligadas à sua pessoa parceira numa intimidade emocional, para então se doarem e partilharem na intimidade sexual (“preciso de me conectar emocionalmente para me ligar sexualmente”).
Estas ligeiras diferenças e a quantidade de fatores que possam pesar no pedal do travão versus o da excitação poderá conduzir os casais a este lugar de discrepância do desejo sexual. Por outro lado, novamente as fases do ciclo de vida de um casal poderá ter também um impacto importante.
Até porque o desejo não se mantem sempre igual, correto?
No início de uma relação amorosa, é comum o desejo ser espontâneo. Desejamos o outro, queremos estar com este, parece que muito pouco é necessário para que a intimidade sexual aconteça e avance de vento em popa! O que leva o casal a pensar que sempre será assim.
Mediante alguns travões que possam ser acionados no dia a dia da relação, quando o casal assume maiores responsabilidades profissionais, em que algumas preocupações possam surgir e questões relacionais também, poderá ser necessário recordar ou ensinar aos casais que o desejo também poderá ser responsivo.
Ou seja, que poderão ter de ser criadas as condições para os elementos sentirem desejo e se recordarem como é tão bom tocar, abraçar e sentir quem amam. E quando este toque de pele com pele acontece de novo, ativa o elemento perante o desejo, disponibilizando-o para a sexualidade e para o prazer.
Aliás, é o prazer que deveria ser o grande foco. Não necessariamente se está a surgir espontaneamente desejo ou não, mas sim como poderemos nós, ou como poderei eu, promover o recordar do quão prazeroso é este este momento juntos!
A falta de intimidade emocional pode ser também um fator de peso?
A discrepância sexual poderá também falar-nos de uma questão relacional, em que muitas vezes acaba por dar lugar a uma dança por parte do casal em que os elementos vão alimentando, através dos seus gestos e palavras, a sua dinâmica sexual. Ou seja, um dos elementos apela constantemente ao sexo e à intimidade sexual e, quanto mais este apela, mais o outro elemento foge, porque poderá necessitar primeiro de intimidade emocional, fechando-se e indisponibilizando-se à intimidade sexual.
Quanto mais este elemento se fecha, mais o outro elemento se sente rejeitado, mais protesta e acusa o outro de não o desejar. Muitas vezes assiste-se a uma dança que dá lugar a duas queixas: O elemento A que acusa o elemento B de nunca querer sexo e de ser, por exemplo, “frigida”; O elemento B que acusa o elemento A de estar sempre a querer sexo, acusando-o de “ser com certeza um tarado sexual quando ainda há 15 dias tiveram sexo”.
O grande desafio associado a esta questão reside na tensão gerada pela discrepância do desejo sexual, tornando-se de facto um problema para a relação quando o casal fica enredado neste ciclo infinito de tensão.
Como explico ao meu parceiro que não tenho tanto desejo sexual sem que isso cause problemas?
Aprender a gerir as nossas emoções e a nossa posição e, paralelamente, ver as necessidades e perspetivas do outro é fundamental para que se consiga cultivar uma comunicação aberta e honesta, de modo a navegar a tensão que a situação acarreta para o casal. Muitas vezes o elemento que apresenta menos desejo acaba por ser percecionado como sendo o problema, acaba por ser colocado no lugar da psicopatologia, sentindo-se pressionado para uma intimidade sexual.
O elemento que apresenta mais desejo perceciona-se como tendo um problema, porque não se sente desejado. É fundamental o casal conversar e ir aprendendo a navegar as suas diferenças, trazendo para a relação as necessidades distintas de cada um. E esta poderá ser uma importante forma de iniciar a conversa.
Trazer para cima da mesa da relação as diferentes necessidades de cada um. Os travões que acontecem no seio da relação e que impulsionam o bloqueio, impedem a conexão e por sua vez, a vivência da intimidade sexual.
Como solucionamos isto?
Reinventar o amor implica o casal também reinventar a sua sexualidade! É essencial devolver a sexualidade e o desejo a cada um dos elementos do casal, reconhecendo a forma como cada um tende a sentir o seu desejo sexual ou a forma como tendem a ser ativados.
Reinventar a sexualidade implica também reconsiderar que não existe uma maneira normal ou mais válida de sentir prazer do que outra, tornando-se realmente importante na relação de casal ganhar mais consciência e compreensão pelas necessidades, desejos e tempos de cada um.
É realmente necessário considerar a qualidade dos estímulos sexuais necessários, compreender e aceitar as necessidades, desejos, fantasias, consentimentos e limites de cada um, para que, de facto, possa acontecer a perceção de prazer dos dois elementos.
Reinventar a sexualidade implica envolver no espaço da relação e intimidade sexual uma maior intimidade emocional, uma atitude de curiosidade, de novidade e de descoberta em relação aos estímulos necessários para cada um.
Como podemos apimentar a intimidade sexual nestes casos?
Arriscamo-nos muito pouco a sair da nossa zona de conforto, a imaginar, a criar, a fazer florescer algo novo que nos faça sentir mais vivos. Vamos desconectando-nos e desligando-nos da nossa intimidade emocional e sexual, de nós próprios e da nossa pessoa parceira. Como se ele se mantivesse por lá aparentemente garantido. Esquecemo-nos que o amor nunca morre de morte natural, mas por não o nutrirmos, não investirmos e arriscarmos mais. Que este morre por apatia e inércia.
É importante colocarmo-nos na agenda e reencontrarmo-nos! Cumprirmos com esse movimento de regresso ao lugar comum, ao Nós. Ao que precisamos, ao que desejamos, e arriscar mostrarmo-nos na relação. Se não nos mostrarmos, como é que o outro poderá responder perante as nossas necessidades?
Mostrarmo-nos implica vulnerabilidade e esta é a base da intimidade. Poderá ser ainda importante compreendermos melhor o nosso reportório sexual, como olhamos o sexo, para que serve para nós o sexo. E o sexo não tem de servir apenas para conexão, poderá servir muitas outras necessidades.
Muitos de nós fomos ensinados a ver o sexo como perigoso, sujo ou como sendo uma bonita expressão de amor, mas o sexo poderá também divertido, servir para fazer as pazes, poderá ser malando, etc. Que o casal consiga partilhar todas as expressões que o sexo possa ter para si e ampliar a sua visão. Juntos poderá ser importante descobrir o que mais o sexo poderá ser na sua relação.