Em 2010, Vanessa Ribeiro Rodrigues era correspondente da rádio TSF e do jornal Diário de Notícias, no Brasil, quando conseguiu entrar na prisão feminina de Talavera Bruce, em Bangu, Rio de Janeiro, para conhecer o trabalho da ONG Afroreggae.
“Percebi que havia uma urgência enorme em partilharem as histórias”, conta-nos. Naquele estabelecimento prisional brasileiro entrevistou várias mulheres e, um ano mais tarde, continuou o trabalho em Portugal, onde falou com outras mulheres nas prisões de Santa Cruz do Bispo e de Tires.
As histórias acumularam-se e deram vida a livro Ala Feminina, lançado em março deste ano. Por aqui encontramos histórias de 17 mulheres reclusas (nove portuguesas, três brasileiras, uma romena, uma uruguaia, uma venezuelana, uma colombiana, uma angolana), que estão divididas por estes estabelecimentos prisionais.
A maior diferença entre as prisões portuguesas e a brasileira tornou-se evidente para a autora. “O que posso convocar é ao nível da formação: essas duas prisões em Portugal têm, de facto, mais oportunidades para ocupar o tempo em reclusão – proporcionando oportunidades de formação e de trabalho – e que no caso de Talavera Bruce era inexistente.”
Ao longo do livro conseguimos perceber as histórias de cada uma destas mulheres. Em muitos casos, Vanessa Ribeiro Rodrigues teve apenas alguns minutos com as reclusas. Algumas das entrevistas não ultrapassavam os sete minutos. Porém, a carga emotiva e os motivos que levaram estas mulheres até à situação de reclusas são descritos com pesar, e quase sempre com arrependimento.
“Todas estas histórias foram-me acompanhando. Agora a marca mais forte de ter ouvido estes testemunhos é, de facto, a possibilidade de pensarmos que poderíamos ser nós. E isso é desconcertante.”
Vanessa Ribeiro Rodrigues
Ala Feminina por outras palavras
“[o livro] É uma viagem pela condição da mulher no contexto de reclusão: preocupações, superações, quotidianos, relação com os filhos e a família, resiliência, e os caminhos que conduziram à reclusão. É um livro que escuta a urgência de mudança que estas mulheres querem”, explica-nos a jornalista.
E é isto que procuram, acima de tudo. A mudança. O livro conta-nos histórias de crimes de homicídios, cúmplices de homicídios mas, sobretudo, de tráfico de droga. Algumas destas mulheres traficavam droga em casa, outras serviam de correio de droga. Mas há algo que as une. A maioria fê-lo em desespero, por necessidade, porque precisava. Não foi leviano, não foi por capricho. Esta é uma das ideias essenciais do livro e algo que marcou a autora.
“Todas estas histórias foram-me acompanhando. Agora a marca mais forte de ter ouvido estes testemunhos é, de facto, a possibilidade de pensarmos que poderíamos ser nós. E isso é desconcertante.”
A Saber Viver escolheu oito excertos destes testemunhos presentes no livro.
8 excertos desconcertantes de Ala Feminina
“Muita gente está presa porque realmente tem necessidade de fazer alguma coisa, mas eu não. Tipo assim, eu queria chamar a atenção não sei pelo facto de eu não me relacionar bem com o meu pai, aí eu queria chamar a atenção dele, tudo o que eu fazia era para chamar a atenção dele. Eu sabia que se eu fizesse alguma coisa relacionada com isso, ele ia logo… Ele veio, quando eu vim presa, ele veio me visitar e a gente conversou. A gente se reconciliou.”
Soraia, tráfico de drogas. Talavera Bruce, no Rio de Janeiro
“Os meus filhos eram pequeninos naquela altura e assim eu nunca fiz nada em frente deles. Por isso é que os meus filhos são contra tudo isso mesmo. Da última vez, o meu filho mais velho já era maior de idade e disse: ‘Mãe, se te acontecer alguma coisa, não contes comigo. Perdes um filho que eu nem à visita de vou ver.”
Margarida, tráfico de droga. Santa Cruz, Porto
“Eu não pensei muito, precisava de dinheiro para mim e para a minha mãe. Ela depende de mim. Agora é ajudada pelas vizinhas. Na Venezuela eu estudava administração aduaneira e trabalhava numa empresa de contabilidade. Só que não era o suficiente para vivermos. E eu só sonhava em poder ter dinheiro. Mas já só me faltam cinco meses”
Katherine, tráfico de droga. Tires, Lisboa
“Eu precisava do dinheiro e não medi as consequências. Nunca imaginei que fosse presa. Eu nunca tinha feito algo assim, nunca me passou peça cabeça fazer algo assim, mas precisava muito do dinheiro. Fui ingénua. E não se pode jogar com a ingenuidade e muito menos com a liberdade. Nunca me imaginei porque sempre trabalhei honestamente. Isso só prova que tenho muito a aprender com a vida.”
Cláudia, tráfico de droga. Tires, Lisboa
“Futuro? Agora a minha perspetiva mesmo é ir de precária e estar com as minhas filhas o mais tempo possível. Quero muito estar com as minhas filhas o mais tempo possível. Quero muito estar com as minhas filhas o mais tempo possível. Quero muito estar com as minhas filhas. É no que mais penso. É a minha culpa de estar a perder isso. Pensando bem, os melhores anos da vida das minhas filhas já estão perdidos”.
Aida, cúmplice de homicídio. Santa Cruz do Bispo, Porto
“O nosso sonho era ter filhos. Mas não estávamos a conseguir porque ele não pode. Tem um problema, mas havia esperança de um tratamento. Então, daquele momento em diante em diante tudo fica mais difícil e começámos a desesperar. Tínhamos casa para pagar. E então vem uma pessoa que nos alicia e que toca no nosso ponto fraco, dizendo que vamos ganhar um dinheirinho, para ter o nosso filho e fazer o tratamento”.
Elis, tráfico de droga. Santa Cruz do Bispo, Porto
“A minha vida lá fora, além de eu traficar, que eu não posso negar, cocaína e heroína, o dinheiro entrava fácil, mas sofria-se porque eu andava nas feiras (…) eu sei que o cigano por ele já é considerado burro, costuma-se dizer, mas não é bem assim. Porque eu fui a uma formação de emprego pedir trabalho e negaram-me três vezes por eu ser cigana, porque vestia saia comprida. Eu senti isso na pele”
Agostinha, tráfico de droga. Santa Cruz do Bispo, Porto
“No dia em que fui presa, estava no multibanco a fazer um carregamento de telemóvel. Estava com os meus filhos no supermercado. Tínhamos acabado de fazer compras e chegaram [agentes policiais] num carro civil a perguntar pelo meu nome completo e que os teria de acompanhar (…) Mas o pior não foi esse dia, foi o dia em que os meus filhos me viram de algemas. É a maior dor que tenho”
Rosa, mandatária de homicídio. Santa Cruz do Bispo, Porto
“Um sonho que eu queria ter? Nunca me perguntaram isso. Sei lá, ser feliz ao lado do meu filho, do meu marido e da minha mãe, e esquecer este mundo, é o meu grande sonho, é ficar bem, não querer saber mais destas vidas, deitar-me com a cabeça descansadinha, esse é o meu sonho, ficar tudo bem”.
Nádia, tráfico de droga. Santa Cruz do Bispo, Porto
“Fui presa. Fomos presos. E até eu me mentalizar, eu não queria viver. Depois fui andando, sabe Deus como. Não sei como foram passando estes nove anos já. Com muita dificuldade. [Começa chorar.] Nem quero pensar. Perdi os meus filhos. No dia do julgamento, um dos meus filhos só dizia: ‘Assassina, assassina’. Nem quero pensar”.
Glória. Santa Cruz do Bispo, Porto
Curiosa para ler Ala Feminina? Conheça também o novo livro Afinal as feministas até gostam de homens.