Amamentação: a política está a limitar a escolha das mães?

Amamentação: a política está a limitar a escolha das mães?

Não há nada melhor para os recém-nascidos do que o leite das mães. Mas os interesses das grandes empresas podem estar a condicionar a decisões de milhares de mulheres no que toca a alimentação. Donald Trump também é protagonista desta história.

Por Ago. 16. 2018

O escândalo rebentou pouco antes da Semana Mundial pela Amamentação. O jornal americano New York Times (NYT) revelava que os Estados Unidos da América tinham boicotado uma resolução internacional para promover o aleitamento materno na Assembleia Mundial de Saúde que decorrera em maio de 2018.

A reunião de altos dignitários de políticas de saúde pública pretendia aprovar um documento que incentivasse todos os países do mundo a concretizarem medidas que estimulassem a alimentação de crianças até aos 6 meses exclusivamente com leite das mães.

A potência norte-americana não só votou contra como, alegadamente, coagiu vários países em desenvolvimento a fazerem o mesmo e ameaçou cortar o financiamento à Organização Mundial de Saúde (OMS) em 845 milhões de dólares. O país acabou por ficar sozinho, mas o voto contra impediu que a resolução fosse aprovada.

O presidente Donald Trump reagiu com veemência ao artigo do NYT acusando o jornal (mais uma vez) de escrever notícias falsas. Afirmou ainda que “os EUA apoiam a amamentação, mas não acreditam que as mulheres devam ver-lhes negado o acesso ao [leite de] fórmula. Muitas mulheres precisam desta opção por causa da má nutrição e da pobreza.”

Então porque é que administração de Trump votou contra? “A resolução originalmente elaborada colocava obstáculos desnecessários às mães que procuram providenciar nutrição para seus filhos”, explicou uma fonte anónima do Ministério de Saúde dos EUA ao NYT. “Reconhecemos que nem todas as mulheres são capazes de amamentar por uma variedade de razões. Essas mulheres devem ter escolha e acesso a alternativas para a saúde de seus bebés e não devem ser estigmatizadas.”

Aleitamento materno vs aleitamento artificial

As propostas em cima da mesa tinham como objetivo evidente limitar a publicidade aos leites de fórmula nas maternidades e reduzir o vocabulário aceitável nos anúncios, excluindo deles referências que pudessem sugerir ou afirmar que o leite em pó é um alimento mais completo e seguro do que o leite materno.

As conclusões incontestadas de uma variedade de estudos apontam para uma lista de benefícios para os recém-nascidos que bebem leite materno e que se prolongam pela vida fora – em que se incluem a redução da mortalidade infantil, a diminuição do risco de obesidade na idade adulta.

As mulheres que amamentam também têm vantagem sobre as outras: apresentam menor risco de desenvolver cancros da mama e dos ovários, diabetes tipo 2 e artrite reumatoide, por exemplo.

Segundo os estudos mais recentes na área da alimentação na primeira infância, as condições de pobreza e a má nutrição das recentes mães não são capazes de diminuir a qualidade nutricional do leite que produzem.

A frase de Trump foi criticada também por ser uma afirmação falsa ou, pelo menos, desinformada. Mas os anúncios que asseguram que a fórmula tem todos os componentes do leite materno ou ainda mais, abundam pelo mundo fora.

Alvo principal: países em desenvolvimento

A investigação do NYT liga a posição dos EUA aos interesses das empresas que produzem leite de fórmula. De acordo com o Euromonitor, citado no artigo, o lucro destas empresas tem vindo a estagnar. Mas em 2018 essas companhias esperam crescer 4%. E as estimativas apontam para que essa percentagem seja alcançada nos mercados dos países em desenvolvimento.

A indústria do leite em pó sofre com as baixas taxas de natalidade dos países ricos e é conhecedora das estatísticas que indicam que neles a alimentação exclusiva com leite materno nos primeiros meses de vida tem tendência a crescer. Por essa razão, as marcas estão a apontar para os países mais pobres com economias em crescimento.

Olhemos para as Filipinas. O país com mais de 100 milhões de habitantes tem 20 milhões a viver abaixo do limiar da pobreza. E ainda uma taxa de fecundidade que chega aos 3 filhos por mulher em idade fértil (em Portugal, por exemplo, é 1,3).

É também o país do sudeste asiático com a licença de maternidade mais reduzida – as mulheres têm, no máximo, 78 dias de dispensa ao trabalho. A alimentação exclusiva de crianças até aos 6 meses com leite das mães fica imediatamente posta em causa pelos 2 meses de pausa nas obrigações laborais.

Como se não bastassem as condicionantes laborais à amamentação e um mercado enorme, as empresas dedicadas à nutrição infantil têm sido acusadas de políticas agressivas para encorajar as mulheres mais pobres a usarem leite de fórmula nos seus bebés.

Publicidade: a grande arma das empresas de leite em pó

Em janeiro de 2018, o jornal britânico The Guardian publicava uma investigação feita com a organização Save the Children. A mesma demonstrava que a Nestlé, a Abbott, a Mead Johnson e a Wyeth estavam envolvidas em ofertas ilegais (como viagens e bilhetes para espetáculos) a profissionais de saúde. Estes acabavam por favorecer o aleitamento artificial com as marcas que os “convidavam” em vez do leite materno.

Publicidade em que se lê “aumento do QI clinicamente provado” é só um dos exemplos dos slogans usados para seduzir as famílias de classes mais baixas a comprarem leite de fórmula. As marcas recusam estas acusações.

O caso filipino repete-se hoje no México, no Chile, e numa série de outros países. A linha do tempo de investigações semelhantes vem, pelo menos, desde 1974. Neste mesmo ano, países como África do Sul e Moçambique eram palco de campanhas de marketing que influenciavam as decisões de compra das jovens mães.

Se todos os bebés do mundo fossem amamentados até aos dois anos de idade, mais de 800 mil crianças até aos cinco anos salvar-se-iam da morte todos os anos – OMS

Além do custo desnecessário com a alimentação, já que a maioria das mulheres podia dar leite materno aos filhos mas preferia comprar fórmula por acreditar ser melhor, registou-se um aumento significativo das mortes na primeira infância. As mesmas eram causadas por doenças transmitidas pela água e pelas deficientes condições de higiene das zonas de baixos rendimentos.

Mais: as famílias com poucos recursos acabavam por juntar mais água à fórmula não conseguindo oferecer aos bebés a quantidade necessária de nutrientes para se desenvolverem. Muitos acabavam por morrer também, de subnutrição.

Atualmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que se todos os bebés do mundo fossem amamentados até aos dois anos de idade, mais de 800 mil crianças até aos cinco anos salvar-se-iam da morte todos os anos.

As ambições do departamento de saúde da ONU não são, no entanto, tão altas. Para 2025, a OMS espera alcançar apenas uma taxa de 50% de amamentação exclusiva dos bebés até aos seis meses, contra os 38% atuais, com o consequente aumento da amamentação complementar até aos 2 anos.

#NormalizeBreastFeeding

De regresso aos EUA, a polémica da Assembleia Mundial de Saúde surge num ano em que a amamentação é um tema quente quase todos os meses. Só este ano de 2018 é que se tornou legal amamentar em público em todo o território daquele país.

Sim, 2018. Ohio e Utah não tinham legislação específica sobre o assunto e essa falha fazia com que muitas mulheres pudessem ser acusadas de exibicionismo ou comportamento indecente e sujeitas a julgamentos nos tribunais.

Se a lei mudou, a mentalidade que ignora a função biológica dos seios e sobrepõe a ela a noção hipersexualizada do corpo da mulher parece manter-se. Junte-se a ela um fenómeno que parece ter nascido nas redes sociais e já passou para as ruas – a ofensa gratuita e o julgamento furtuito, sem pensar – e temos o contexto perfeito para que as mulheres que amamentam no metro ou na paragem do autocarro sejam insultadas.

São vários os relatos de mulheres que, ao amamentar em público, foram envergonhadas, convidadas a sair do lugar onde estavam ou, pelo menos, aconselhadas a cobrirem os seios enquanto alimentavam os filhos.

Neste 2018, para cada caso desses, surgiu um nurse in, ou seja, uma manifestação de mulheres a amamentar no mesmo lugar onde uma foi humilhada por alimentar um bebé a peito – pode ter sido num McDonalds ou numa piscina pública de Minneapolis.

Como na alta política, também no que toca a amamentação a América parece estar dividida. Logo a seguir às declarações de Trump, o desfile de fatos de banho da Sports Illustrated reuniu críticas e aplausos por ter apresentado a modelo Mara Martin a amamentar a filha de cinco meses enquanto mostrava um biquíni dourado deslumbrante.

A manequim veio primeiro dizer que o que se passou fora um acaso, mas é difícil não ver neste momento uma mensagem social e política. Poucos dias depois, afirmava no Instagram que a amamentação em espaços públicos tinha de ser normalizada.

Já a 4 de agosto, uma manifestação em Times Square, Nova Iorque, de 25 mulheres e suas respetivas crianças chamava a atenção para a necessidade de ver a amamentação como uma questão natural e positiva e não julgar quem o faz em público.

Martha’s Vineyard, Seattle, Savannah foram outras cidades norte-americanas que receberam demonstrações públicas de incentivo à amamentação no mesmo dia. Os protestos pacíficos foram, de acordo com o New York Post, recebidos com insultos dos que passavam. “Pornografia grátis?” disse um dos homens na rua.

Na Europa, tudo mais pacífico

Há dois anos um post de Instagram da desconhecida Naomi Jael tornava-se viral. A fotografia mostrava-a a amamentar o filho num jantar de gala com a legenda: “Quando estás num casamento, com um vestido aperaltado e salto altos e o teu filho fica com fome… Não te importas e dás comida ao miúdo”.

Depois de receber insultos, a alemã que vive habitualmente nos EUA acabou por editar o texto, acrescentando ao original. “Fiquem loucos também com isto: Também alimentei o meu filho na cerimónia religiosa dentro da igreja. Aqui na Alemanha as pessoas não ficam loucas por causa disto. É NORMAL. Não há nada de rude ou de mau. É por isto que tenho seios! Porque Deus deu-me mamas para alimentar os meus filhos!”

A censura à amamentação em público parece ser de facto menor no lado de cá do Atlântico, tal e qual como relata Naomi Jael no pequeno texto para o Instagram.

Há registo de uma ativista do grupo feminista FEMEN ser retirada pela polícia da Praça de São Paulo, no Vaticano, por amamentar com o tronco nu em maio deste ano.

Sem legislação específica sobre amamentação no espaço público na maioria dos países (o Reino Unido é dos poucos que já defendem o direito ao aleitamento em todos os espaços, desde a aprovação do Equality Act 2010), não são conhecidos casos de mulheres acusadas de atentado ao pudor por o fazerem.

A amamentação é objeto de legislação na Europa, sobretudo no que toca aos direitos laborais. Do ponto de vista do comportamento público, a lacuna na lei não será preenchida tão cedo.

E talvez não seja preciso. O número de mulheres que amamentam desde a primeira hora de vida dos bebés tem vindo a aumentar nos últimos anos, assim como aquelas que aleitam os filhos em exclusividade durante períodos cada vez maiores.

A realidade portuguesa

Em Portugal, e depois de nos anos 70 e 80 termos atingido números muito baixos de amamentação, o “fator licença de maternidade” parece ser o mais relevante para que o país tenha passado de uma taxa de aleitamento exclusivo aos 3 meses de 34% em 1995 para 60% em 2014. Nesse período, a licença de maternidade passou de 98 dias em 1995 para 5 meses, pagos a 100%, ou 6 meses, pagos a 83%, em 2009, se partilhada com o pai.

Em Portugal, mais de 98% inicia o aleitamento materno no hospital na primeira hora de vida do bebé (…). Mas só 80% mantém o aleitamento materno exclusivo à data da alta hospitalar, que ocorre, em condições normais, 3 dias depois do parto.

Se o contexto social e familiar parece ser determinante para o sucesso do aleitamento materno em vários estudos realizados internacionalmente, as mulheres portuguesas têm vantagem.

O que se pode ler no estudo ‘Vivências das avós face ao aleitamento materno’, das escolas superiores de medicina e enfermagem da Universidade de Coimbra, é que a perceção das gerações mais velhas é a de que o aleitamento é visto como um ato natural. “Não é questionado o desejo de amamentar da mulher mas a possibilidade de o fazerem. A tradição familiar diz que a amamentação é uma das primeiras provas de amor pelo filho.” O estudo refere ainda que as avós manifestavam “um sentimento de felicidade” sempre que viam os netos a serem amamentados.

Mesmo assim, a OMS assevera que as práticas de Portugal e do Continente Europeu estão longe de serem as desejadas. Com 32% e 38% de média de amamentação exclusiva até aos 6 meses, respetivamente, e com uma quase inexistente taxa de amamentação complementar a partir dessa idade, parece que ainda há muito a fazer no que toca à saúde dos bebés.

Para a promoção da amamentação materna há recomendações de saúde da União Europeia que têm o seu reflexo na definição de estratégias e metas nos estados membros.

Em Portugal, mais de 98% inicia o aleitamento materno no hospital na primeira hora de vida do bebé, com um grande incentivo do pessoal médico. Mas só 80% mantém o aleitamento materno exclusivo à data da alta hospitalar, que ocorre, em condições normais, 3 dias depois do parto.

Os dados são da Direção Geral de Saúde (DGS) reunidos no Registo do Aleitamento Materno, uma iniciativa governamental iniciada em 2008 no quadro das políticas de apoio ao aleitamento materno.

Já este ano, em maio, a DGS anunciou a intenção de abrir um Banco de Leite Humano no Porto, o segundo do país, e a ampliação da cobertura do Banco de Leite de Lisboa. Israel Macedo responsável pelo Banco de Leite Humano do Centro Hospitalar de Lisboa Central, disse à Agência Lusa que os bebés prematuros são a população alvo desta iniciativa.

O leite materno permite “diminuir as infeções intestinais graves”, fazer com que “o cérebro se desenvolva melhor”, e tem também um “papel anti-inflamatório”. O especialista acrescentou ainda que “quando se faz ressonância magnética a estas crianças encontram-se cérebros mais desenvolvidos do que os das crianças que são alimentados com leite artificial”.

Tudo indica que não vamos ouvir tão cedo representantes políticos portugueses e europeus a manifestarem-se contra o aleitamento materno, nem tomar decisões oficiais que bloqueiem as iniciativas internacionais. A tendência no velho mundo parece ser voltar às origens: promover no nascimento aquilo que é mais natural e que demonstra ser, cientificamente, a melhor opção para mães e bebés.


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