Controlo sobre o corpo feminino: desde quando e até quando?
O controlo sobre o corpo da mulher está entranhado na sociedade desde sempre. Será um início sem fim ou as coisas já mudaram? Falámos com a socióloga Maria José Núncio para perceber o passado, o presente e o futuro do problema.
Afinal, o que é ser mulher? Qual o significado social que atribuímos ao sexo feminino?
Sabemos o que significa ser mulher no sentido prático e científico, mas as caraterísticas que fazem de nós mulheres ocupam um lugar muito mais complexo na sociedade.
Uma das diferenças mais evidentes no julgamento entre sexos é a perceção do corpo de cada um. Mais do que apenas biologia, a sociedade criou a conceção de género para nos distinguir e rotular.
Falámos com a socióloga Maria José Núncio para compreendermos melhor a maneira como nos habituámos a ver o corpo da mulher, quais as razões para tal e como podemos contornar estas preconceções.
Um início sem fim
Questionarmo-nos se vivemos numa sociedade que coloca o corpo das mulheres num molde, cujo formato já vem acompanhado de uma opinião pré-concebida, e o modo como deve utilizar o seu corpo parece desnecessário.
Segundo Maria José Núncio, a sociedade “tem e sempre teve uma opinião formada acerca do corpo da mulher, ligada tanto àquilo a que chamamos padrões de beleza, como àquilo que são considerados os atributos e funções da feminilidade: a maternidade e a amamentação”.
A perceção do corpo feminino tem vindo a mudar, mas o modo como o julgamos também. “Essa opinião foi evoluindo ao longo da História, mas é patente desde as formas de arte mais primitivas até à publicidade dos dias de hoje”, acrescenta.
Se pensarmos bem, o controlo sobre o corpo da mulher começou com a arte (pintura e escultura). Muitas vezes vistas como musas dos artistas, os seus corpos eram sinónimo de perfeição, o auge da beleza.
Este padrão arrasta-se até aos dias de hoje. Numa primeira instância, “com o cinema a difundir-se e a influenciar o modelo ideal de beleza e de corpo”, afirma a socióloga. Este controlo é ainda mais evidenciado pela publicidade na indústria da moda, que vende não só o produto, mas também a ideia de que para atingir determinada aparência é necessário adquirir tal produto.
“Esse controlo externo, ditado por interesses comerciais, acaba por ser interiorizado pelas próprias mulheres, convertendo-se num autocontrolo que leva a uma permanente procura de correspondência ao tal modelo idealizado”, refere Maria José Núncio.
Banalidade entre quem escolhe e quem sofre
Mas, então, porque é que olhamos para a mulher e o homem como seres tão diferentes?
Desde sempre, os grandes sinónimos do género feminino são a fragilidade e a submissão. Designações que vão além das células que nos constituem.
O principal ataque ao corpo feminino passa pela “‘imposição’ social de um modelo idealizado e padronizado daquilo que deve ser a aparência da mulher”, sublinha a socióloga.
Percebemos anteriormente que este padrão social começa desde cedo, na verdade, pela mão masculina. “A arte teve sempre autoria masculina (era inacessível às mulheres). As representações do feminino acabaram por corresponder sempre às idealizações dos homens acerca das mulheres”, explica Maria José Núncio.
A barreira que separa o corpo feminino do masculino começa no desejo e poder do sexo masculino. As características que a sociedade atribui às mulheres nasce de um produto moldado pelas mãos do homem.
A constante dualidade entre “beleza para as mulheres, virilidade para os homens; fragilidade para as mulheres, força para os homens; vulnerabilidade para as mulheres, coragem para os homens” são características que acabam por criar este entrave social entre ambos os sexos.
Hoje em dia, além da publicidade, uma das maneiras mais fortes de evidenciar estas características é através da indústria pornográfica.
A pornografia contribui para o “reforço da ideia de submissão da mulher ao desejo masculino”, afirma a socióloga. A fragilidade e submissão da mulher ao homem continuam a ser os grandes pilares que suportam a indústria (e, consequentemente, os ideais da sociedade).
Trata-se de uma “degradação da sexualidade da mulher, como existindo, apenas, para satisfação da sexualidade masculina, e conduz à legitimação social de que o corpo da mulher é algo que pode ser adquirido para utilização masculina”, acrescenta a socióloga.
Todas estas conceções não se dissipam, apenas ganham novas formas e dimensões e conduzem a uma insatisfação pessoal por parte das mulheres em corresponder aos padrões de beleza designados por entidades externas.
É um problema que se inicia cada vez mais precocemente na vida das mulheres e surge “enquanto elemento de construção da identidade e de afirmação perante a sociedade”, sublinha a socióloga.
Contudo, apesar de estes padrões se interiorizarem de modo subtil e quase obrigatório, Maria José Núncio acredita que não existe uma autoconsciência desta objetificação e banalidade atribuída ao corpo das mulheres.
“Parece-me que surge como algo ‘naturalizado’ e ‘legitimado’ pelos próprios processos de socialização das mulheres e é essa não-consciência da objetificação que gera as tais consequências perversas, que podem ser, em última análise, a rejeição da identidade pessoal para poder corresponder ao modelo ideal e padronizado”, afirma.
Como tornar o molde mais inclusivo?
A conclusão assenta na pergunta. Mas, então, como é que resolvemos este problema? Como é que se dá a volta a uma questão com séculos de História?
O primeiro passo é não depositar esperança nas gerações futuras, mas começar de imediato a combater as pré conceções com que rotulamos o corpo da mulher.
Nos dias que correm, a força das redes sociais leva a que as mulheres sintam necessidade de se submeter a padrões de beleza irreais. A distribuição de conteúdo é mais rápida e maior, assim como a necessidade de corresponder a estes padrões desde tenra idade.
Por isso, é necessária “uma coresponsabilização da comunicação social e diferentes produtores de conteúdos relativamente ao combate contra imagens estereotipadas”, conclui a socióloga.
Não obstante, é necessário responsabilizar a indústria da moda e da beleza pela divulgação dos corpos ideais como apenas um, apelando por isso “à diversidade e não-padronização” dos corpos femininos.
Hoje em dia, começamos a ver cada vez mais marcas com esta preocupação, mas deve ser algo mais naturalizado.
Não deve ser um jogo incessante em tentar destacar-se pela diferença porque está na moda, mas sim porque se trata da realidade dos corpos femininos: diferentes entre si, mas iguais aos olhos da sociedade.