A ativista feminista e escritora Diana Russel foi das primeiras autoras a usar o termo, tendo-o inclusivamente redefinido: “matança de mulheres por homens, por elas serem mulheres”. O facto de o conceito em si se focar no assassinato de mulheres por homens, de forma isolada e destacada do homicídio de uma forma geral, representa um desafio social e há quem prefira falar em assassinato, enquanto conceito mais abrangente.
Já Russel, afirma que termos mais latos como “assassinato” apenas ajudam a disfarçar a misoginia latente por detrás deste fenómeno.
Não podemos esquecer o problema
A relatora especial da ONU e jurista croata especialista em Direitos Humanos, Dubravka Simonovic, foi nomeada Relatora Especial das Nações Unidas para a Violência contra as Mulheres, em agosto de 2015.
Em novembro de 2020, num comunicado que foi apoiado por dezenas de especialistas em direitos humanos, propôs a criação de observatórios e sistemas de vigilância para prevenir assassinatos. Segundo a relatora especial, a crise pandémica que o mundo atravessa está a desviar o foco de atenção de uma crise muito prévia ao Covid- 19, a da violência contra meninas e mulheres.
A sua iniciativa dá pelo nome “Watch Feminicídio” e os dados que têm sido recolhidos do Unodoc – United Nations Office on Drugs and Crime (cuja missão é zelar pela paz, segurança, direitos humanos e desenvolvimento) – indicam o envolvimento de parceiros em assassinatos que têm na sua origem a intenção de matar. Nestes casos, mais de 80% das vítimas são mulheres e, segundo Simonovic, a grande maioria destes crimes é evitável.
A relatora pede a criação de uma relação de categorias criminais com base na ligação da vítima ao assassino, seja ele marido, namorado, familiar, conhecido. Desde então, mais países têm criado mecanismos de defesa e observatórios geridos, em muitos deles, por grupos de mulheres, associações académicas e de direitos humanos.
A 25 de novembro, assinala-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Entre 2013 e 2018, segundo o relatório da APAV de Vítimas de Violência Doméstica apresenta um total de 104.729 crimes, sendo que num universo de 100%, mais de 85% das vítimas eram mulheres, contra 14% vítimas do sexo masculino. Quanto à relação da vítima com o autor do crime, o cônjuge lidera com cerca de 30%, seguindo-se das categorias “outros”, “companheiro”, “filho”, “ex-companheiro” e por fim “pai/ mãe”.
O relatório dá ainda conta de uma realidade desconcertante (como se não bastasse a que se apresenta por si só). É que cerca de 42% das vítimas situam-se entre os 26 e 55 anos de idade e eram sobretudo mulheres casadas e com filhos, bem como os autores dos crimes também eram casados, o que nos ajuda, uma vez mais, a concluir que tudo se passa no seio familiar, em residência comum.
Entre 2013 e 2018, o sexo dos autores do crime foi superior a 85% no caso dos homens, ao passo que os crimes cometidos por mão feminina correspondem a perto de 13%. A meu ver, igualmente condenáveis.
Não se trata de uma questão sexista e sim de acautelar um flagelo que continua a vitimar um número francamente superior de mulheres.
Em 2004, foi criado o Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta (Organização Não Governamental constituída em Setembro de 1976) – cujo objetivo é desenvolver o estudo do homicídio e tentativa de homicídio por violência de género. O Observatório propõe-se a tentar compreender este fenómeno para que possam ser criados caminhos que o erradiquem.
A questão continua a prender-se com um sistema patriarcal que teima em não morrer com as gerações que partem. Porquê?
Estaremos nós, mulheres, de um modo geral, a perpetuar este fenómeno de forma inconsciente permanecendo em relações abusivas, pensando estar a zelar pela união de uma família que o não é? Tomadas pela baixa autoestima, falta de amor-próprio, subjugação ao homem, muitas financeiramente dependentes dele e incapazes de sair de relações tóxicas por motivos vários.
Não confundamos…
Meus caros, ser feminista não é um machismo ao contrário, virado do avesso. Não. Ser feminista é ser-se uma pessoa com carácter que tem por base o respeito e princípios igualitários. É querer ter os direitos e deveres que os homens têm e que todos os seres devem ter numa sociedade que se diz igualitária.
Atenção, não corramos aqui o risco de entrar em extremismos (acho lindo que um homem deixe entrar a senhora primeiro e que lhe puxe a cadeira do restaurante. Isto ainda se faz, assim tipo de lés a lés, certo? Digam-me que sim). Tudo o que é de extremos é mau.
Falo de podermos ocupar os mesmos cargos e de que, assim sendo, ganhamos o mesmo ordenado. Falo de podermos vestir o que quisermos sem que seja, em cabeças doentes e retrógradas, um convite subtil que acaba muitas vezes em assédio e pior, violação e até a morte.
Falo de termos ao lado homens que, na mesma linha condutora e iguais em direitos e deveres, desempenham tarefas domésticas e familiares sem que se ouça sempre um “ai, o meu marido/ namorad@ ajuda-me imenso”. Trata-se tanto do homem ajudar a mulher como da mulher ajudar o homem. Se um tem mais jeito/gosto por certas coisas, o outro terá para outras e no meio é que está a virtude.
Falo de continuarmos a ser respeitadas enquanto mulheres com aspirações próprias, sejam pessoais ou profissionais, mesmo depois de sermos mães ao invés de sermos metidas no saco da maternidade cujo baraço se apertou para não mais se desatar. Homens, fica a dica: acreditem que nós, mulheres, já somos duras o suficiente connosco próprias. Não precisamos que o sejam também.
E lembrem-se, o ventre de uma mulher é e será sempre a nossa primeira casa.
P.S.: Acabei de escrever este texto, que dará lugar a uma crónica, no comboio a caminho do trabalho. Levantei-me para sair e, já ao pé das escadas, um homem afastou-se para que eu descesse à sua frente. O universo conspira a favor das boas causas.
Cláudia Cecílio licenciou-se em Tradução pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas como comunicadora nata que é, tentou sempre dar passos que a ajudassem a chegar mais perto das pessoas. Atualmente, além da tradução, está a trabalhar no seu primeiro original (livro). Acompanhe-a também no Instagram.