Crónica. Violação: não também é resposta
Primeiro, fomos dos pais, depois passámos a ser dos maridos. Sim, o verbo empregue é o “ser”, porque como os bens eram de quem os comprasse, também nós éramos de quem nos quisesse. Porque toda a gente sabe que as coisas não têm querer.
Não havendo dados concretos nesse sentido, alguns estudiosos acreditam que o Patriarcado encontra as suas origens há cerca de 6000 anos, isto é, 4000 aC. Note-se que ainda antes disto, evidências antropológicas sugerem que as sociedades pré-históricas de caçadores-coletores eram relativamente igualitárias e que só vários anos depois, o conceito de Patriarcado se difundiu.
A codificação da lei na Mesopotâmia, designadamente o Código de Hamurabi – escrito pelo rei Hamurabi em 1 772 a.C – anula os direitos das mulheres a vários níveis, sendo que as punições ou os prémios, por infertilidade, infidelidade e outras condutas, eram definidas pelos homens.
No antigo Egipto, contudo, uma mulher pertencente à classe média podia ter assento no tribunal, estar envolvida em negócios imobiliários e herdar ou transmitir propriedades. Já na Grécia Antiga, era bem diferente, onde a mulher tinha o dever de “ordenar bem a casa, cuidar da propriedade dentro de casa e obedecer ao seu marido.”
Esta influência espalhou-se com as conquistas de Alexandre, O Grande, educado por Aristóteles, e cujo retrato da mulher fala de um ser moral, intelectual e fisicamente inferior ao homem, cujo domínio era natural e virtuoso. E foi assim por muitos e muitos anos.
Hoje, milénios depois, a base de dados PORDATA, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, avança um total de 215 mulheres vítimas de violação, contra um total de 22 homens no ano de 2018.
De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, o ano passado registou 431 violações, fazendo de 2020 o terceiro ano consecutivo em que este crime em concreto apresenta uma subida.
Com a emancipação feminina dos loucos anos 20 e no rescaldo das profundas transformações sociais que a 1ª Guerra Mundial trouxe, a mulher viu a sua imagem mudar também.
A reclamada liberdade feminina não passou apenas (no tanto que isso encerra) pelo direito ao voto, pela igualdade no que toca à educação e ao trabalho, pelo direito à licença de maternidade, ao divórcio e ao direito de propriedade.
A mulher passou também a ter direito à integridade do seu corpo e, por isso, direito ao aborto, acesso à contraceção e aos cuidados pré-natais. Passou ainda a estar protegida contra a violência doméstica e o assédio sexual.
Foi aqui que a mulher começou a frequentar bares e a dançar até tarde, sendo que até então era vista como a ficha tripla que alimentava o homem, os filhos e a casa. A partir do século XIX, a liberdade conquistada permitia-lhe mostrar as pernas com vestidos mais curtos do que o habitual e maquilhar-se.
A 22 de fevereiro de 2021, em pleno século XXI, num direto de Instagram, um jovem afirmava ter violado uma rapariga, acrescentando que “foi só uma vez”.
Uma vez é o bastante para que a vítima de violação passe o resto da vida a lutar contra os traumas causados. As nódoas negras que contam a história de um corpo agredido e que tentou reagir e defender-se, acabam por desaparecer, mas e a negritude que fica por dentro? Quem é que trata dela? Quem apaga uma culpa que não pertence à vítima e que a sociedade tem ainda dificuldade em não lhe imputar?
Pouco importa o que trazia vestido ou alguma coisa que tenha dito e que tenha plantado dentro de uma mente distorcida o desejo de a possuir pela força, contra a sua vontade. É tão grave a violação em si como o facto de o ter confessado numa rede social.
Esta confissão não é senão o espelho de um sistema carente de revitalização, em que os agressores não chegam, muitas vezes, a ser punidos pelas suas ações e quando são, as penalizações são mais ridículas que apropriadas, já que nunca serão proporcionais, porque não há maneira de medir o medo, os ataques de pânico e ansiedade, os anos de terapia e as vidas que ficam hipotecadas a um qualquer canto onde tudo aconteceu.
Tal como a violência doméstica, urge que a violação seja considerada crime público, para que a queixa não esteja dependente da vítima. Como pode esperar-se que alguém que viu o seu corpo ser invadido por um (às vezes mais) indivíduo tenha capacidade para enfrentar todos os procedimentos inerentes à apresentação de uma queixa?
Note-se que estão aqui abrangidas crianças também e, só em 2020, a PJ abriu cerca de 600 inquéritos por abusos sexuais, dos quais 75% são menores.
A subida bastante significativa face a anos anteriores denota que as ocorrências estarão diretamente relacionadas com a pandemia, que obriga a passar mais tempo em casa, tempo esse que no caso de crianças e jovens era, até então, passado na escola.
A esmagadora maioria dos agressores, falamos de 72% de um total de 52 suspeitos de abusos sexuais detidos só até ao final de novembro do ano passado, está em prisão preventiva. Cerca de 80% destas detenções está associada a abusos de menores, ao passo que os abusos contra pessoas adultas sofreu uma descida considerável.
A explicação é uma: adultos privados da vida social devido ao encerramento de muitos estabelecimentos e crianças em casa pelo mesmo motivo, embora falemos aqui de estabelecimentos de ensino, naturalmente. E isto são número baseados em casos denunciados, pelo que ainda assim, não correspondem à realidade pura e dura.
Não são só os pedófilos que por passarem agora mais tempo em casa, como toda a população mundial, têm mais tempo livre para alimentar redes de pedofilia online. Não. Infelizmente, segundo José Matos, responsável da PJ, a maioria dos abusos a menores acontece em contexto familiar, pela mão da família, amigos ou vizinhos.
O código penal português prevê para o ato de coação sexual uma pena máxima de 8 anos. Se falarmos de violação, a pena máxima passa a 10 anos, sendo que a mesma pena máxima se aplica às vítimas incapazes, por algum motivo, de mostrar resistência e igual ainda para vítimas que se encontrem internadas.
Atenção que as penas máximas têm aplicabilidade em caso de “cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos (…)”.
Os abusos sexuais contra menores (de 14 anos) pode ser punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, mas se esses abusos contemplarem práticas como as referidas anteriormente, a pena estende-se a um máximo de 10 anos.
Tudo o que seja incitar por meio de conversa, por escrito ou objetos pornográficos, é punido com uma pena que pode ir até 3 anos. No entanto, se existir intenção lucrativa, a pena pode ser aumentada para 5 anos.
O capítulo “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual” do Código Penal é extenso e os artigos inúmeros, tal é a imaginação e perturbação do ser humano, mas nenhum deles menciona penas acima dos 10 anos de prisão.
Enquanto país, gostamos de fazer crer que somos muito modernos, que acompanhamos o evoluir dos tempos, que não ficamos atrás. Que seria, Portugal dos brandos costumes ficar para trás.
O site da Amnistia Internacional avança que apenas 9 em 33 países europeus reconhecem a violação na lei do seu país. Não basta reconhecê-lo, é preciso combatê-lo.
A verdade sem espinhas é que a mulher continua a ser considerada – por muitos, felizmente, não pelo todo – um bem, uma propriedade, como quando era entregue a credores para saldar as dívidas dos maridos, qual testemunho ou moeda de troca. As crianças veem a sua inocência ser-lhes roubada e uma vida inteira hipotecada àquela que é para muitos, a primeira experiência sexual.
A mudança verdadeira, aquela que se faz por dentro, ainda está por acontecer.
Cláudia Cecílio licenciou-se em Tradução pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas como comunicadora nata que é, tentou sempre dar passos que a ajudassem a chegar mais perto das pessoas. Atualmente, além da tradução, está a trabalhar no seu primeiro original (livro). Acompanhe-a também no Instagram.