Aos 14 anos, idade em que assumiu ser transgénero, Giovanna Tavares foi apedrejada à porta da sua escola, no Brasil. Hoje, a viver em Portugal há 18 anos, é uma empresária de sucesso e tem como um dos principais objetivos melhorar a vida de pessoas como ela.
“As pessoas trans carregam um grande estigma e eu passei por um período muito difícil, mas criei forças para lutar pelo meu espaço”, conta-nos, dias depois do lançamento da marca de roupa interior que criou para as mulheres trans – TloveT – a primeira do género em Portugal.
“Tudo partiu de uma necessidade própria, pois não encontrava roupa interior adequada à minha fisionomia e, em conversa com uma amiga, ela sugeriu-me que eu desenvolvesse a minha marca”, diz.
Da ideia ao produto final passaram três anos e quer que a marca sirva para uma maior inclusão da comunidade. “A sociedade gosta de nos relegar para um submundo, para a marginalidade e para a prostituição, e quero desmitificar o que é ser trans, para que as pessoas entendam que somos só pessoas”, realça.
Para Giovanna Tavares, o apoio incondicional da mãe foi preponderante. “Se não fosse ela, não estaria aqui”, garante.
Ser e sentir
“Ter uma rede de apoio é fundamental para ultrapassar os problemas com que uma pessoa trans se depara diariamente”. Quem o diz é Daniela Bento, coordenadora do Grupo de Intervenção Rápida Trans (GRIT) da ILGA, que fez o seu coming out aos 26 anos.
“Sempre fui mulher, mas demorei a perceber”, afirma. Hoje, assume-se como mulher trans, não binária, pansexual e anarquista relacional.
Ainda que tenha tido alguns problemas, diz ter tido uma transição relativamente tranquila e não ter tido problemas com o seu corpo. No seu trabalho é reconhecida e respeitada, apesar de trabalhar como engenheira de software, uma área por norma machista e misógina.
Mas nem todas as pessoas trans podem dizer o mesmo. “Muitas vezes, sentem que não têm espaço para ser e sentir”, alerta a coordenadora do GRIT, onde lhe chegam as mais variadas queixas: pessoas postas de parte no contexto laboral; outras que só encontram trabalho em call centers, porque não se vê a imagem; jovens que são expulsos de casa; casos de violência…
No grupo de apoio, que funciona online, a idade mínima para participar são os 16 anos, mas por escrito há jovens a partir dos 12 a expor as suas dúvidas. Qualquer que seja a idade, “as questões mais comuns são sobre a saúde, terapias, medicamentos, cirurgias e sexualidade”, reconhece.
Lei da autodeterminação
Em Portugal, desde 2018, a lei da autodeterminação permite que pessoas a partir dos 16 anos escolham o sexo, embora, até aos 18, só o possam fazer com o consentimento dos representantes legais.
“Com isto, aboliu-se a necessidade de um relatório médico que comprovasse a perturbação de identidade de género e a necessidade de as pessoas terem de fazer uma cirurgia”, explica Daniela Bento.
Mesmo assim, alerta a ativista, os menores de 16 anos também têm de ser protegidos e isso está previsto num despacho que se seguiu à lei referida e que permite que antes dessa idade seja possível mudar o nome na escola.
“Tal como podem escolher a casa de banho onde querem ir, mas isso na prática nem sempre é respeitado”, lembra Manuela Ferreira, presidente da AMPLOS (Associação de Mães e Pais Pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género).
Ainda há quem vá à conservatória para mudar de nome e é mandado para casa para pensar.
“Na nossa lei, falta ainda o conceito de identidade não binária e que também os imigrantes possam mudar de nome. Tal como falta a proteção da identidade de género no artigo 13 da Constituição. Ajudava ainda o cartão de cidadania não ter o género e haver nomes neutros”, refere Daniela Bento.
O processo é sempre desgastante e demorado. “Quando mudei o livrete do carro por ter mudado de nome, tive basicamente de fazer uma venda a mim mesma”, exemplifica a ativista.
A lei está lá, mas é preciso ser monitorizada. “Faz com que as pessoas possam reclamar pelos seus direitos, mas não muda mentalidades. Ainda há quem vá à conservatória para mudar de nome e é mandado para casa para pensar.
Há um estudo que diz que mais de 20% da energia gasta pelas pessoas LGBT é a fazer uma performance de maneira a que as pessoas as respeitem”, realça.
Papel dos pais
Essa questão da insegurança e as dúvidas relativamente à saúde são os aspetos que mais preocupam os pais que procuram apoio na AMPLOS, onde não há ajuda técnica, mas sim de outros progenitores que estão a passar pelo mesmo processo com os filhos.
Ninguém quer ser homem ou mulher, quer apenas ser quem é.
Manuela Ferreira diz que com a pandemia o número de progenitores a procurar ajuda cresceu. “Houve muito coming out impulsionado pela pandemia, as pessoas foram empurradas para falar destes temas, foram obrigadas a olharem-se”, diz.
“Na AMPLOS, todas as dúvidas são legítimas, mas há algo que é muito importante explicar aos pais: por mais confusos e tristes que estejam, o caminho dos filhos é sempre o mais difícil. São eles que levam todos os dias com agressões”, garante.
“Quando chegam, os pais também costumam questionar-se se será só uma fase, mas depois percebem que não. Ninguém quer ser homem ou mulher, quer apenas ser quem é. Um jovem uma vez disse-nos – ‘falta a peça do puzzle e eu encontrei-a'”, conta a presidente da AMPLOS.
Casos únicos
Outro aviso que Manuela Ferreira deixa é que cada caso é um caso e o que funciona para uma pessoa pode não funcionar para outra.
“Ser trans não passa necessariamente por mudar o corpo”, acrescenta Daniela Bento, mas socialmente é o que se espera. Faz-se tudo para que a mulher trans se pareça o mais possível com a mulher cis e o homem trans com o homem cis”.
Se há quem tenha a necessidade de adequar o seu corpo, há quem também opte por não fazer a transição corporal. “O processo do nome é capaz de ser um dos mais importantes, até porque é uma salvaguarda dos seus direitos”.
Nunca é a condição trans que os leva para a depressão, estão, sim, mais vulneráveis, porque são agredidos sucessivamente pela sociedade.
No entanto, Daniela Bento avisa que “muitas pessoas começam pela terapia hormonal, porque sentem que assim sofrerão menos violência. Há quem sinta necessidade de mudar de escola ou de trabalho quando mudam o nome. Para muitas pessoas, fazer as cirurgias de confirmação sexual é essencial para a sua vida; outras nem sequer querem fazer o tratamento hormonal”.
Saúde a precisar de respostas
Certo é que em Portugal a saúde não dá respostas atempadamente. “Há jovens que têm uma vontade muito grande de iniciar o processo, porque têm pressa de ficar bem, mas depois deparam-se com tempos de espera de mais de seis meses para cada consulta e isso leva a ansiedade e a estados depressivos”, refere Manuela Ferreira.
Mas a presidente da AMPLOS é perentória: “Seja por falta de assistência médica ou por outra razão, nunca é a condição trans que os leva para a depressão, estão, sim, mais vulneráveis, porque são agredidos sucessivamente pela sociedade. É esta que os empurra para situações limite”.
Daniela Bento recorda que a comunidade trans tem mais problemas de saúde mental do que a LGB ou a cis devido às dificuldades com que se depara.
As estatísticas mostram que metade das pessoas trans já pensaram em suicídio. Mas a dirigente da ILGA nem gosta de usar o termo suicídio.
“As pessoas trans são vítimas de homicídio social, entram numa espiral de sofrimento devido à não aceitação da sociedade. Há uma taxa altíssima de solidão, de invisibilidade e rejeição”, garante. “Mas ainda que o mundo venha contra nós, o coming out é um processo de libertação grande”, remata a ativista.
Acompanhamento psicológico
O psicólogo Gonçalo Neves não tem dúvidas de que a “questão da identidade de género não é um problema para a própria pessoa. A pessoa só é aquilo que é. O problema é a forma como é maltratada, ridicularizada e como a sua liberdade é atacada de todas as formas do ponto de vista social”.
Quando isso leva as pessoas a sentirem-se mal, só há um caminho: “Acompanhá-las e ajudá-las a perceber que não estão erradas, que não há nada errado ao serem elas próprias”.
O primeiro ponto, frisa o psicólogo, “é criar um espaço de segurança em que possam sentir-se à vontade para falarem das dificuldades do dia a dia. Depois, é fazer um reforço da sua identidade para que a opinião alheia tenha o menor impacto possível e não provoque um estado ansioso e depressivo. É importante também criar relações que sejam benéficas e onde se possa ser livre”.
Gonçalo Neves é cofundador da Blind Talks, uma plataforma de psicólogos cujo primeiro contacto pode ser feito de forma anónima, algo que ajuda as pessoas a procurarem ajuda sem o estigma da saúde mental.
“Falar destes temas é fundamental. Quanto mais desconhecimento existir sobre as pessoas trans, mais negativas são as reações. Temos de normalizar e fazer perceber que não é por se falar deste tema que haverá mais pessoas trans. A escola tem um papel preponderante, tal como a família, e esta é muitas vezes o primeiro espaço de maus-tratos e de confronto”, realça o psicólogo.
“Para mim, um ponto fundamental é que são os nossos medos ou fragilidades identitárias que impedem a aceitação da identidade do outro. Com isto, não estou a afirmar que todas as pessoas têm problemas identitários, mas sim que quando alguém próximo de nós não se rege pelas regras da sociedade, isso leva-nos a pensar nas nossas inseguranças e abana a nossa estrutura certinha”, conclui.