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A era da desinformação e das notícias falsas

A era da desinformação e das notícias falsas

A iliteracia mediática, a falta de regulação das redes sociais e de outras plataformas digitais, os tudólogos, os influencers e o clickbait são alguns dos fatores que contribuem para a divulgação rápida de notícias falsas, um problema profundo da nossa sociedade.

Por Jan. 16. 2022

A eleição de Donald Trump, em 2016, e a de Jair Bolsonaro, dois anos depois, o Brexit e o impacto negativo da infodemia que tem acompanhado a pandemia de covid-19 são apenas quatro exemplos que ilustram as ameaças e os desafios que a desinformação e as notícias falsas representam para a sociedade de hoje.

Não se pode negar o seu impacto profundo a nível político, social, económico e que todos somos potenciais alvos e disseminadores de fake news, portanto, o combate a este fenómeno começa em cada um de nós.

Perante uma notícia ou conteúdo, nada melhor do que ter um espírito crítico acurado antes de fazer uma partilha. Além disso, é fundamental procurar informação em meios de comunicação ou sites fidedignos em vez de nos informarmos apenas nas redes sociais, que, através de um algoritmo, limitam a sua visão do mundo.

Os títulos sensacionalistas, rebatizados de clickbait, também são uma fonte de desinformação

Exemplos do passado

Convém lembrar que nada disto é um fenómeno novo na história da comunicação. “A nossa cronologia está povoada de notícias falsas e repleta de momentos de desinformação”, confirma Inês Amaral, professora do Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

A também investigadora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho dá o exemplo do que se viveu em Portugal durante o regime ditatorial: “O papel de António Ferro na ditadura não foi um acaso. Usou todos os meios possíveis, em particular, a rádio, o meio preferido de Salazar, para passar mensagens falsas ou que não eram inteiramente verdadeiras para gerar o pânico e o medo”.

A desinformação, continua a especialista em comunicação, “foi também a arma perfeita da propaganda nazi. Joseph Goebbels [ministro da Propaganda do Terceiro Reich] montou toda uma máquina em torno de uma propaganda falsa, mas na qual as pessoas acreditavam, porque havia pequenos elementos que diziam respeito às suas vidas e a questões prementes na sociedade”.

Inês Amaral aponta ainda o exemplo de A Guerra dos Mundos, o famoso episódio que ocorreu em 1938, quando a rádio CBS interrompeu a sua programação para noticiar uma suposta invasão de marcianos. Era apenas uma peça de teatro radiofónico de Orson Welles, mas, como diz a professora universitária, “não foi difícil criar o pânico a partir de ficção”.

Divulgação rápida

Mas se notícias falsas e desinformação sempre existiram, o que mudou radicalmente nos últimos anos foi a sua disseminação rápida e à escala mundial através da Internet, das redes sociais e de outras plataformas digitais.

“Essa rapidez tornou o contraditório quase impossível, fez com que a disseminação sem contexto passasse a ser comum, por isso é que uma notícia publicada há 10 anos se torna novamente notícia quando é replicada, e, por fim, a produção de informação não é feita apenas por profissionais, ou seja, qualquer pessoa pode produzir conteúdo e até acrescentar um ponto a conteúdos publicados em revistas e jornais”, explica Inês Amaral.

A falta de literacia mediática – a capacidade de aceder, avaliar e compreender as mensagens dos vários meios de comunicação – é um dos fatores que tem contribuído para a desinformação. “Leva à leitura errónea e à dificuldade de distinguir a informação jornalística do que é conteúdo disponível online e até no contexto de televisão que não é feito por jornalistas e, por isso, não está sujeito às regras jornalísticas.”

“Para a esmagadora maioria da população, é difícil distinguir um jornalista de um comentador ou de um apresentador de um programa de entretenimento. Além disso, a maior parte das pessoas, quando ouve falar de notícias falsas, pensa que vêm do jornalismo, mas não é isso que acontece”, alerta a investigadora.

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Caça ao clique

Atualmente, as pessoas não sabem de onde vem a informação que consomem. “’Apareceu- me’ é uma expressão muito usada para designar as chamadas incidental news e refere-se ao que vai aparecendo nos feeds dos social media, que, muitas vezes, nem notícias são e as pessoas nem verificam a fonte”, avisa a professora e investigadora da Universidade de Coimbra.

Os títulos sensacionalistas que, na Internet, foram rebatizados de clickbait, também são uma fonte de desinformação. “Acabam por chamar a atenção e as pessoas só leem o título, que, depois, nem corresponde ao lead nem à notícia”, refere Inês Amaral.

Por outro lado, temos também pessoas com notoriedade pública a credibilizar informação falsa. A investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho dá o exemplo de André Ventura: “O líder político do partido de extrema-direita representado no Parlamento manipula conteúdos que vão surgindo em alguns sites agregadores de notícias em seu benefício. O Chega promove, por exemplo, histórias inacreditáveis sobre pessoas ciganas que têm fomentado a ciganofobia. Mesmo que todas as pessoas de etnia cigana recebessem o Rendimento Social de Inserção, como eles alegam, o País não iria à falência, como dizem.”

Normalmente, continua a especialista em comunicação, “não se lança desinformação só por lançar; há sempre objetivos por trás, ou causar danos ou obter ganhos”.

Sabedoria dos idiotas

O que nos faz acreditar em notícias falsas, desinformação e até duvidar de factos científicos? “O efeito Dunning-Kruger [conceito desenvolvido por Justin Kruger e David Dunning, nos anos 90 do século passado, que mostra que não reconhecemos a nossa ignorância] associado a crenças pessoais permite explicar parte do problema. As pessoas acham que assistir a um vídeo de Youtube ou terem acesso a informação como nunca antes foi possível as habilita de alguma forma a interpretar de forma crítica essa informação. Faltam-lhes as bases, falta-lhes o sentido crítico para poderem fazer uma leitura adequada da informação existente”, responde João Júlio Cerqueira, médico especialista em Medicina Geral e Familiar e Medicina do Trabalho.

Em 2017, João Júlio Cerqueira criou o site SCIMED – Ciência Baseada na Evidência, “em jeito de ‘grito de revolta’ contra a propagação de desinformação e pseudociência de forma descontrolada nas redes sociais. Na altura, o ponto de partida foi um colega médico muito famoso que promovia a ingestão de água do mar, dizendo que teria benefícios para a saúde, algo que não faz qualquer sentido e, no entanto, conseguiu captar larga audiência, incluindo várias presenças na comunicação social tradicional”.

O que é factual e evidente começou a ser substituído por crenças e emoções pessoais, portanto, mais depressa as pessoas avaliam e selecionam os conteúdos a partir das suas preferências do que pela verdade – Inês Amaral, professora

Bolhas de disparates

David Marçal, bioquímico e divulgador de ciência, diz que, na área da saúde, há uma razão paradoxal para que as pessoas ponham em causa conhecimentos científicos: “A sensação de segurança conferida pela própria medicina baseada na ciência faz com que muitas pessoas a deem como adquirida e que pensem que já não é necessária. Já se esqueceram, por exemplo, das complicações derivadas do sarampo, poliomielite e varíola, esta última erradicada nos finais dos anos 70 do século passado”.

Além disso, continua, “a ideia de curadoria de conteúdos caiu em desuso. Portanto, aposta-se nos que são mais populares e com os quais as pessoas têm maior probabilidade de interagir. Geram-se, assim, bolhas de disparates, onde as pessoas que pensam dessa forma acabam por se encontrar, ficando com a ideia errada de que existe um grande apoio popular para os seus disparates”.

Na verdade, como diz Inês Amaral, “o que é factual e evidente começou a ser substituído por crenças e emoções pessoais, portanto, mais depressa as pessoas avaliam e selecionam os conteúdos a partir das suas preferências do que pela verdade. Isso faz com que coisas absurdas se tornem virais e que nos deparemos com taxas elevadas de resistência às vacinas em vários países com base em mentiras, tal como aconteceu com a efetivação do Brexit e com as eleições de Trump e Bolsonaro”.

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Negar a ciência

A ciência tem sido alvo de muita desinformação e isso ficou bem visível nesta pandemia, mas, como diz João Júlio Cerqueira, “quem sai prejudicada com as fake news não é a ciência, mas a sociedade. Vimos recentemente o que acontece quando se nega a ciência, ignorando as vantagens das quarentenas, máscaras e vacinas na limitação da propagação da pandemia. Isso traduz-se em centenas de milhares de mortes evitáveis. Vimos como as pessoas continuaram a comprar suplementos para ‘reforço do sistema imunitário’ para os quais não há evidência que funcionem. Vimos como as pessoas se deixaram levar por pseudocientistas, por políticos e aderiram ao Kit Covid para tentar prevenir e tratar a doença.”

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Erros de várias partes

E de quem é a culpa? “Temos culpados institucionais que não valorizam a ciência a não ser quando lhes dá jeito. Temos os gigantes tecnológicos que têm como objetivo manter as pessoas o máximo de tempo possível na sua rede social para poder lucrar com isso. E temos abutres, que aproveitaram a pandemia para lucrar com isso, vendendo consultas e falsos tratamentos a pessoas menos informadas ou mais fragilizadas”, alerta João Júlio Cerqueira.

Relativamente aos órgãos de comunicação, o médico e autor do SCIMED diz que têm de ser mais exigentes na qualidade da informação que publicam. “Quando não sabem, devem ouvir peritos. Dar voz a personalidades que não sabem do que estão a falar, alimentar a desinformação para criar polémica e ganhar cliques é algo que pode ter resultados a curto prazo, mas, a longo, mina a credibilidade da comunicação social e das próprias instituições que nos governam.”

David Marçal também refere que há muita desinformação nos meios de comunicação social, não nos blocos informativos principais, mas “nos programas da manhã e da tarde para o qual são convidados todo o género de gurus e especialistas em vitaminas e mezinhas que surgem sem contraditório para veicular a sua desinformação”.

Regular espaços onde convivem múltiplas pessoas e entidades é difícil sem rapidamente surgir a bandeira da censura – Inês Amaral, professora

Tudólogos e influencers

Os nossos entrevistados alertam ainda para o papel dos que, na gíria, são chamados de tudólogos, que comentam todos os temas, seja em programas de entretenimento, seja informativos, embora, realça Inês Amaral, nestes últimos haja espaço para o contraditório. “Claro que podem ter opinião, o problema é assumirem-se como especialistas em áreas em que o não são”, realça David Marçal.

No digital, assiste-se também ao fenómeno dos influencers que também transmitem mensagens como se se tratasse de especialistas. A propósito destes, João Júlio Cerqueira afirma que “infelizmente, as pessoas tendem a cair na falácia da autoridade. Se alguém famoso patrocina algum produto, então só pode ser bom. Os conselhos alimentares só podem estar corretos, caso contrário, não teria tantos seguidores. As suas opiniões sobre saúde não podem estar erradas dado os seguidores que conseguiu angariar. Nada mais errado. O Cristiano Ronaldo pode ser o maior futebolista do mundo, mas não o procuraria para me aconselhar sobre mais nada a não ser sobre esse tema específico”.

Recentemente, o Facebook Papers voltou as atenções para aquilo que as redes sociais não estão a fazer neste âmbito da desinformação, mas deveriam. Os milhares de documentos divulgados por Frances Haugen, uma ex-analista do Facebook, revelam que a empresa de Mark Zuckerberg não tem feito tudo o que podia para combater as fake news e o discurso de ódio.

Inês Amaral acredita que isto acontece porque a regulação dos social media é complexa: “Regular espaços onde convivem múltiplas pessoas e entidades é difícil sem rapidamente surgir a bandeira da censura. Além disso, sabemos que a regulação que as plataformas podem fazer vai contra o seu próprio negócio e há muitos interesses económicos por trás de todas elas”, remata.