Sociedade

Duelo em trânsito. Transporte público ou transporte privado?

Carro privado ou transportes públicos? Duas mulheres que todos os dias fazem dezenas de quilómetros entre a casa e o local de trabalho fizeram opções distintas. O que é que leva uma a usar o carro, apesar de ser ferverosa adepta dos transportes públicos? O que leva outra a ir de comboio, apesar de ter saudades do carro?

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Escrito por
Out. 16, 2018

Os transportes públicos podem vir a ser mais baratos já em 2019. A medida está a ser estudada pelo Governo para o Orçamento de Estado do próximo ano e deve avançar para as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.

O presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, apresentou a proposta numa entrevista ao Expresso e chegou a avançar com valores: 40 euros mensais para usar nos 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa, uma região onde mais de 50% das deslocações são feitas em carro próprio.

Mas será que diminuir o preço dos transportes vai chegar para que mais pessoas tomem uma opção mais verde nas suas deslocações pendulares? “Espero que não,” responde Amélia Lopes, 38 anos, residente em Carcavelos. “Se o valor for a única medida a ser tomada vai ser muito complicado. O comboio já anda cheio, apesar dos passes serem caríssimos. A ideia qual é? Sermos empurrados para dentro do comboio como se vê no Japão? Ou é irmos no tejadilho das carruagens como na Índia?”

O comboio de todos os dias

Amélia Lopes usa o comboio para as suas deslocações pendulares desde que a empresa onde trabalha se mudou para Santos. “Não fazia muito sentido, morando ao pé da estação de Carcavelos e tendo o escritório pertíssimo da estação de comboios ir trabalhar de outra forma. Mas tenho muitas saudades do meu carro, da minha música matinal, de me poder rir às gargalhadas sem incomodar os outros. Era muito mais cómodo.”

Amélia Lopes acrescenta, depois, que não é só uma questão de comodismo mas de conforto mínimo. “Os comboios da linha de Cascais estão muito degradados. No verão pode ser um milagre chegar ao trabalho de manhã com um ar lavado. Este ano, carruagens sem ar condicionado foi o que mais houve. Junta-se a isso a escassez de horários, as horas de ponta com demasiada gente… No inverno o maior problema são as estações, sem condições mínimas de abrigo das pessoas, as estações de Oeiras e Algés então… em dias de vendaval não se pode lá estar.”

O tempo que demorava a chegar ao trabalho e a casa por vezes atingia as 3h – Vanessa Raminhos, carro

Vanessa Raminhos, 26 anos, faz 30 km quilómetros por dia entre o Seixal, onde reside, e Paço de Arcos, onde trabalha. Ao final do dia, tem outro tanto para completar. Começou por fazer essa deslocação usando carro, barco, comboio e autocarro e demorava entre 1h30m e 2h.

Passou apenas a usar o carro “uma vez que a zona onde comecei a trabalhar é menos acessível ao nível de transportes” e ganhou meia hora ao tempo que fazia antes. Ainda tentou o autocarro que liga a Margem Sul à Norte, mas “o tempo que demorava a chegar ao trabalho e a casa por vezes atingia as 3h.”

Agora, Vanessa Raminhos usa apenas o carro e explica que as viagens de“comboio ou o autocarro, para fazer a travessia até Lisboa, eram mais demoradas e caras, por se tratarem de empresas privadas.” Se no carro privado o tempo em que faz o percurso está condicionado pelo trânsito, na opção pelos transportes públicos tinha ainda um outro fator a aumentar as horas gastas em deslocações: as “permutas entre transportes. Por vezes, um atraso de 2 minutos significa um tempo extra de viagem de 30 minutos. De carro, gasto mais dinheiro mas em alturas de pouco trânsito reduzo o percurso para 45 minutos.”

Eu não tenho paciência para andar à procura de lugar e se fizesse uma avença seriam mais 100 euros por mês, a juntar aos 100 que gastava com gasolina. Agora com os parquímetros a situação ainda piorava mais! – Amélia Lopes, comboio

Apesar da sua opção individual, Vanessa Raminhos afirma que é uma defensora do sistema de transportes públicos. “Acho que há muita gente que anda de carro por comodismo, sobretudo quem mora e trabalha em Lisboa. O serviço não é assim tão mau e a maioria dos percursos no centro da cidade duram cerca de 20, 30 minutos e, com o trânsito que existe, de carro demoram muito mais. Isto acaba por prejudicar tanto a vida destas pessoas, como de todas as outras que precisam mesmo de levar o carro. Também quem tem um horário mais convencional, ou seja, que não trabalhe por turnos, também tem mais facilidade em apanhar transportes do que quem tem horários rotativos.”

Depois do trabalho, ponho-me a cravar boleias para regressar a casa. Andar de comboio é uma chatice – Amélia Lopes, comboio

Inferno duplo: parques de estacionamento e horários

Amélia Lopes, que usa todos os dias o comboio, não podia estar mais de acordo com Vanessa. “O que definiu mesmo a minha opção foi não ter parque em Lisboa para poder estacionar. Eu não tenho paciência para andar à procura de lugar e se fizesse uma avença seriam mais 100 euros por mês, a juntar aos 100 que gastava com gasolina. Agora com os parquímetros a situação ainda piorava mais! Mas se tivesse lugar de estacionamento grátis, continuaria a vir de carro. Ter carro dá muito mais liberdade, até a liberdade de ter o saco da ginástica no porta-bagagens! E os sapatos de salto alto para as reuniões, que agora ficam numa gaveta no escritório. E quando tenho um programa em Lisboa, depois do trabalho, ponho-me a cravar boleias para regressar a casa. Andar de comboio é uma chatice.”

Os horários dos comboios que ligam o subúrbio chique à capital são um problema maior para Amélia, quando o trabalho a obriga a fazer horas extraordinárias. “Agora a sério, o maior problema é que as minhas funções me obrigam a trabalhar muitas vezes pela noite dentro e voltar de comboio pode ser assustador. Pode dar-se o caso de ficar meia hora na estação quase sozinha, porque o comboio acabou de passar, também não há muita sensação de segurança nas carruagens a essa hora. E, claro, se aos dias de trabalho os comboios deixam de passar à meia-noite e meia, quando há noitadas eu tenho de voltar de táxi para casa. O que vale é que o patrão paga!”

“A melhor parte de andar de transportes públicos era o poder aproveitar para fazer várias coisas, como ler um livro ou por os sonos em dia depois de uma noite mal dormida” – Vanessa Raminhos, privado

Vanessa Raminhos confirma a existência do mesmo problema e que ele afeta cada vez mais pessoas, sobretudo quem mora na periferia. “Os horários são muito limitativos nestes casos. Olhando especificamente para as ligações entre Margem Sul e Lisboa, as que são feitas até mais tarde são as fluviais entre o Barreiro e o Terreiro do Paço, que terminam às 2h da madrugada. As restantes ligações terminam entre as 20h e as 23h. Isto complica o uso de transportes para quem trabalha em horários que não sejam das 9h às 17h. Para quem, como eu, trabalha na periferia, os transportes também são bastante escassos.”

Nos 40 minutos que Amélia demora, “se tudo correr bem”, entre casa e o trabalho, ouve rádio com auriculares e “assim sempre me defendo um bocadinho das conversas dos outros. Há sempre alguém a falar ao telefone aos berros ou a contar a vida toda à vizinha do lado. Não percebo quando é que as pessoas deixaram de ter noção de que a vida privada não é para contar em público… A carruagem do comboio parece um facebook live.”

Se tivesse que fazer transbordos não creio que mantivesse esta opção – Amélia Lopes, comboio

Vanessa usava o tempo de outra forma: “A melhor parte de andar de transportes públicos era o poder aproveitar para fazer várias coisas, como ler um livro ou por os sonos em dia depois de uma noite mal dormida.”

O futuro é mais barato e…?

A medida de Medina é bem vista por esta utilizadora de transporte privado, mas ela acrescenta que faltarão mais alíneas à proposta. “Acho que é uma boa medida, no entanto, não acho que seja suficiente para combater a falta de utentes nos transportes públicos. A rede está cada vez mais deficitária, sobretudo o metro e os comboios, e isso desmotiva muita gente de andar de transportes públicos. Percursos que poderiam demorar 30 minutos demoram uma hora ou mais, com pouco conforto (falta de ar condicionado, bancos partidos e chão sujo) e, também, com pouca segurança. Acho que a coisa devia ser feita ao contrário: primeiro, recuperar o investimento para a melhoria da rede de transportes, com mais carreiras e uma rede de metro mais abrangente, como existe em outras capitais europeias. Depois, baixar o valor dos passes para incentivar as pessoas por esse lado. Como as coisas estão a ser feitas, penso que o efeito será o contrário: haverá menos receita para poder investir na rede de transportes, que vai ficar ainda mais degradada, e as pessoas continuarão a optar por andar de carro.”

É que Vanessa poderia estar já a poupar. “De transportes, gastava cerca de 70€ no passe, mais 80€ em combustível, ou seja, cerca de 150€ para fazer a deslocação. Fazendo totalmente o percurso de carro, o valor sobe para cerca de 230€ por mês (portagens incluídas!).” Só que o problema parece ser mesmo o tempo que gasta.

E no fundo é isso mesmo que leva Amélia Lopes a utilizar o comboio. O valor é menor sim, “o meu passe custa só 42€. Enfim, para o serviço que a CP presta, bem podia ser mais barato… Mas eu escolho o transporte público porque poupo tempo. De facto, se tivesse que fazer transbordos não creio que mantivesse esta opção.”

 


 

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