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Estupro culposo: o conceito que culpa a vítima e desculpa o violador (e que gerou revolta)

Estupro culposo: o conceito que culpa a vítima e desculpa o violador (e que gerou revolta)

Foi no Brasil que a dupla de palavras ‘estupro culposo’ surgiu e não tardou a provocar revolta. Perceba o que está em causa no processo que chocou o país da América do Sul e o resto do mundo.

Por Nov. 9. 2020

A 15 de dezembro de 2018, a influenciadora Mariana Ferrer, na altura com 21 anos, foi a uma festa em Jurerê Internacional, em Florianópolis, um estado no sul do Brasil, onde afirma ter sido drogada e violada por André de Camargo Aranha, um empresário e filho de um famoso advogado brasileiro.

Segundo a polícia, Mariana não estava sóbria ao ponto de permitir uma relação sexual. A própria mãe e o motorista da Uber confirmaram que a jovem não estava em si, o que suporta a tese de que foi drogada, e foi isso que levou ao julgamento de André Aranha. O que aconteceu depois foi o que deixou o país em alvoroço.

O julgamento que decorreu em setembro foi considerado por muitos uma total humilhação à vítima, acabando por receber uma onda de apoio nas redes sociais, nomeadamente através da hashtag #justiçapormariferrer – tornando-se num dos assuntos mais comentados no Twitter.

O que realmente aconteceu foi que o promotor do caso defendeu que o acusado não tinha como saber que a influenciadora digital não estava a consentir a relação sexual e, portanto, não teve a intenção de a violar.

Além disso, foram usadas provas que denegriram a imagem da jovem e que tinham muito pouco, ou nada, a ver com o caso. O advogado de André Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, chegou mesmo a mostrar fotografias de Mariana, tiradas profissionalmente antes de tudo isto acontecer, considerando-as, por palavras suas, “ginecológicas”, e acrescentando ainda que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana.

Em tribunal, e ao ver a jovem a chorar, o advogado ainda disse: “Só aparece essa sua carinha chorando. Só falta uma auréola na cabeça. Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lágrima de crocodilo”.

Ao ouvir isto, a jovem contestou ao juiz: “Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”.

Como o estupro culposo indignou o mundo

Ficou, de facto, provado que Mariana e André tiveram relações sexuais. A influenciadora era virgem até à altura da festa e os exames ginecológicos provaram que houve um rompimento do hímen, assim como foi encontrado sémen do acusado na roupa da mesma. Porém, não há provas de que não houve consentimento e, por isso, André Aranha foi considerado inocente. O juiz chegou a dizer que “não há provas contundentes nos autos […], a não ser a palavra da vítima”.

Para agravar a situação, Cláudio Gastão da Rosa Filho, ainda contrapôs: Tu vive disso? Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”

O conceito de estupro culposo não foi nunca usado nas 51 páginas da sentença, nem nas 91 páginas das conclusões do promotor de justiça. A frase foi usada na reportagem do site The Intercept, que quis resumir o caso e explicá-lo “para ao público leigo”. Embora não tenha sido dito em tribunal, a verdade é que a principal defesa do acusado foi que este não soube identificar se Mariana Ferrer consentia ou não a relação sexual.

Ainda assim, não demorou até que a revolta surgisse pelo Brasil e pelo resto do mundo. O caso de violação de Mariana levou ao debate sobre a impunidade dos homens quando são acusados de agirem sem consentimento, assim como a notória e constante humilhação a que as mulheres estão sujeitas quando acusam os seus violadores.

No Brasil, foram várias as manifestações em relação ao caso de Mariana Ferrer.

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