Gordofobia: o conceito que define uma forma de discriminação real
O peso pode ser um tema sensível para muitas de nós, visto que desde crianças nos é impingido ter atenção ao mesmo. A gordofobia pode surgir desta preocupação e afetar pessoas de todos os tamanhos. Falámos com a socióloga Maria José Núncio para perceber a raiz deste problema.
Desde 2004 que a obesidade é reconhecida como doença crónica em Portugal, no entanto, o número de doentes com esta condição continua a aumentar entre a população do País.
Na verdade, e de acordo com o os dados de 2020 do Instituto Nacional de Estatística, cerca de 53% da população adulta portuguesa tem excesso de peso, e 1,5 milhões de portugueses são considerados obesos, um número alto para um País com menos de 11 milhões de habitantes.
Apesar destes dados, nada nos permite discriminar o próximo. Somos todos ser humanos, com as nossas inseguranças e complexos, preocupações e momentos maus, daí ser fundamental evitar julgamentos, tanto connosco próprias como com quem nos rodeia.
Mas a realidade não é tão simples. Para além do impacto que a cultura pop e os media têm na opinião pública, as redes sociais cada vez mais alimentam o estigma que rodeia o peso e o corpo, tanto feminino como masculino.
A Saber Viver conversou com Maria José Núncio, socióloga e professora auxiliar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, para compreender como surgiu a gordofobia e quais os impactos da mesma tanto nas vítimas, como na sociedade.
O que é, na verdade, a gordofobia
O termo fobia descreve um medo ou aversão a algo que, de acordo com a pessoa que a sente, é impossível de conter. Esta condição pode, por vezes, ser incapacitante e gerar ansiedade de tal modo que pode parecer difícil de ultrapassar.
É neste espetro que a gordofobia se encaixa. Maria José Núncio começa por explicar que esta é “uma apropriação conceptual que pretende ilustrar o clima social de aversão à gordura e hipervalorização da magreza” que surgiu “nos finais da década de 60 e, a partir daí, se generalizou e massificou”.
No entanto, esta fobia não afeta apenas pessoas plus-size. Este preconceito abala toda a sociedade, ou seja, tanto pessoas com excesso de peso como pessoas magras, ainda que em diferentes níveis.
A gordofobia pode, então, se manifestar como uma aversão ao corpo gordo, como medo de engordar ou como receio de ser impedida de utilizar serviços ou espaços.
Um dos casos onde esta fobia é mais óbvia é nas lojas de ready-to-wear ou fast-fashion, onde a existência de secções plus-size é praticamente nula.
A socióloga acrescenta ainda que as mulheres são as que mais sofrem com este tipo de discriminação.
“As pressões e exigências sociais relacionadas com o corpo e a imagem fazem-se sentir com muito mais intensidade sobre as mulheres” visto que “sempre existiram, em todas as épocas históricas, visões muito estereotipadas acerca do corpo feminino“, afirma.
A professora fala ainda do padrão de beleza, ou seja, o padrão estereotipado definido como belo, o “corpo e rosto ideais”. Cada vez mais amplificado pelas redes sociais, muda consoante as tendências de moda.
Um exemplo claro deste problema é o declarado regresso da tendência heroin chic, popularizado nos anos 90 e início de 2000, por celebridades como Paris Hilton e modelos como Kate Moss, e que remete para corpos extremamente magros.
Não há como negar que os impactos na saúde mental e física deste tipo de figura são alarmantes e preocupantes.
Impacto na saúde mental
Qualquer tipo de violência afeta o estado psíquico e emocional das vítimas, já que todos temos a necessidade de nos sentirmos integrados, de pertencermos e de sermos aceites tal como somos. O mesmo acontece com a gordofobia, já que esta pode ser considerada um tipo de violência estética.
De acordo com Maria José Núncio, “a existência de padrões muito rígidos e estereotipados, bem como a sua amplificação, que faz com que sejamos expostos em permanência aos mesmos, pode levar à exclusão e desvalorização social”.
Esta constante necessidade de aceitação que muitas vezes sentimos, em mistura com a exposição a opiniões e comentários online, pode ser extremamente devastador para a saúde mental e física. Estas são algumas consequências:
- Comportamentos de isolamento e da adoção de estratégias de evitamento;
- Sentimentos de diferença e desconformidade;
- Baixa autoestima;
- Limitação de felicidade;
- Ansiedade e depressão.
Estes padrões de beleza acabam por nunca serem consistentes, ou seja, o que hoje é visto como bonito, no dia a seguir pode ser completamente posto de lado.
Este fenómeno, que é giratório e inconsistente, está então enraizado na sociedade há mais de 60 anos e, apesar de como sociedade termos feito alguns progressos recentemente, ainda há um longo caminho a percorrer.
Gordofobia no dia a dia
Ambientes de trabalho
Apesar de nos ser ensinado que temos de ser profissionais no ambiente de trabalho, muitas vezes isso não acontece.
A discriminação sempre existiu nos espaços de emprego, seja pela raça, género mas também peso.
Durante a contratação ou mesmo contrato de trabalho, várias pessoas admitem que já sentiram algum tipo de microagressão e discriminação com base no seu tamanho.
Ambientes médicos
Hospitais, centros de saúde ou clínicas podem ser locais intimidantes e assustadores, daí ser imprescindível que sejam espaços onde os pacientes se sentem seguros e compreendidos. Porém, muitas vezes isso não acontece.
A socióloga afirma que, apesar de existir uma crescente preocupação por parte de profissionais de saúde sobre o aspeto físico dos seus doentes, “nem sempre essas preocupações e cuidados são comunicados de forma adequada e empática, de forma a evitar uma espécie de culpabilização, duplamente penalizadora, para quem tem excesso de peso”.
Redes sociais
As redes sociais são hoje, provavelmente, o veículo mais rápido não só de fake news como de discriminação.
Conhecidos como internet trolls, existem várias pessoas que se escondem por detrás de um ecrã e deixam comentários gordofóbicos em fotos ou publicações.
Felizmente, modelos como Ashley Graham respondem a certas acusações e não se deixam ficar, o que é visto por muitos como inspirador e motivacional.
Quote tweet this with a photo of you taking ‘fat positivity’ too far. I’ll start. pic.twitter.com/WlmyYr13Kh
— Ashley Graham (@ashleygraham) December 19, 2022
Como lutar contra esta fobia
Já existem várias campanhas que visam lutar contra a gordofobia, elevar o movimento body positivity e empoderar mulheres e homens por todo o mundo.
Tal como afirma a professora “este tipo de alertas e de campanhas, bem como o tratamento destas questões em conteúdos de entretenimento permitirá, a prazo, construir uma mudança de mentalidades, desconstruindo preconceitos e estereótipos”.
Seja na moda, com marcas como Savage x Fenty by Rihanna, Asos Curve ou Adidas, por exemplo, ou na beleza, com a Glossier e a Dove, os progressos estão a ser feitos e o importante é apoiar marcas que participem na aceitação social de todo o tipo de corpos.
A socióloga conclui, contudo, que apenas é possível acabar com a gordofobia com os “nossos comportamentos, e não pelo discurso”. Acredita que “este compromisso tem de ser assumido na família, mas também pela escola, pelos media e pela publicidade”.