Joana Schenker: “Foram precisos 15 anos a investir neste desporto até poder afirmar que sou profissional de bodyboard”
O mar é a sua casa, o bodyboard a paixão, mas é o ativismo por um oceano cuidado que a move. Estivemos à conversa com Joana Schenker para descobrir mais sobre a sua carreira e sobre os projetos pelos quais dá a cara.
Filha de pais alemães que acabaram por se fixar no Algarve, Joana Schenker ainda não tinha nascido e o seu destino já estava traçado. A proximidade ao mar e o privilégio de crescer no meio da Natureza moldaram a sua personalidade e a maneira de viver.
Vegetariana desde os 10 anos, é uma pessoa descontraída que gosta das coisas simples da vida e bastante confiante, mas nem sempre foi assim. No entanto, hoje mostra com segurança as cicatrizes que tem de infância, na esperança de que outras raparigas se sintam mais à vontade com o corpo e com as marcas que as tornam únicas.
O seu currículo conta com bastantes prémios, aliás, foi primeira portuguesa a conquistar o título de Campeã Mundial de Bodyboard, inúmeros projetos de conservação dos oceanos, luta pela igualdade de género dentro da modalidade e foi ainda condecorada pelo Presidente da República.
Descrevê-la é uma tarefa impossível porque, dentro da sua simplicidade e atitude descontraída, existem várias camadas que nela habitam.
Fique a conhecê-la um pouco mais.
Entrevista a Joana Schenker
Como começou esta paixão com o mar e o que a levou a querer experimentar bodyboard?
O mar sempre fez parte da minha vida, muito antes do bodyboard; desde que tenho memória o mar está presente. O bodyboard entrou mais tarde e de forma muito natural, era o desporto que muitos dos meus amigos de escola praticavam.
Aliás, era considerado o desporto dos miúdos mais ‘fixes’ naquela altura, e acabei por experimentar também. Tinha 13 anos quando comecei e nunca mais parei.
Tornou-se vegetariana ainda muito nova, com apenas 10 anos, o que levou a tomar essa decisão?
Desde criança sempre tive uma enorme empatia para com os animais e conseguia perceber que era uma enorme contradição comê-los. Aos 10 anos, a minha mãe levou-me durante um mês para a Índia; quando regressei a minha força de vontade tinha crescido e tornei-me vegetariana de um dia para o outro.
Foi uma escolha puramente ética e uma das decisões mais importantes da minha vida. Influenciou-me a ser uma pessoa mais consciente e a refletir sobre as consequências das nossas escolhas no mundo, até as mais simples, como aquilo que está no prato.
Sente algum impacto dessa dieta no seu desempenho enquanto atleta?
Sim, acho que traz imensos benefícios a nível de desempenho desportivo. Não só a recuperação é mais rápida, como a alimentação é mais variada e completa a nível de nutrientes. Nunca fico doente e tenho toda a energia de que necessito, apesar de não ter uma comparação de como seria o meu desempenho se comesse carne e peixe, pois já sou vegetariana há mais tempo do que sou atleta.
A realidade é que imensos atletas de alta competição estão a optar por uma dieta vegetariana ou vegana e acredito que eles sabem o motivo dessa mudança.
Foi a primeira portuguesa a conquistar o título de Campeã Mundial de Bodyboard, lembra-se desse momento? O que mudou a partir daí?
Foi o momento mais alto da minha careira. Não apenas por ter sido a realização de um sonho de miúda ou de conquistar o maior objetivo desportivo possível, foi também a recompensa de muito anos de trabalho e sacrifício investidos nesta paixão. Foi ainda mais bonito porque aconteceu no nosso País, com a comunidade portuguesa de bodyboard a partilhar aquele momento comigo, senti que não foi apenas uma vitória pessoal, mas uma conquista partilhada para todos nós.
Depois disso, tudo mudou a nível profissional, abriram-se muitas portas e oportunidades para fazer coisas fora deste universo, a minha agenda passou a ser uma loucura e tive de aprender a lidar com tudo da noite para o dia. Foi uma fase de enorme desafio, mas também de crescimento pessoal e deu à minha modalidade uma exposição que nunca tinha tido antes.
É possível viver exclusivamente do bodyboard em Portugal? Quais são os maiores desafios?
Sou a prova de que é possível, mas não é fácil, de todo. Foram precisos 15 anos a investir neste desporto até poder afirmar que sou profissional de bodyboard, porém, muitos atletas nunca chegam a viver unicamente deste desporto. É uma realidade que se repete em muitas modalidades, pois nem tudo é futebol.
A falta de apoios é o maior desafio e, no caso de bodyboard, ainda se agrava por não ser uma modalidade olímpica, não temos qualquer apoio institucional ou federativo, cada atleta tem de conseguir fazer frente às despesas sozinho e geralmente vive dos patrocinadores.
Alguma vez apanhou um ‘susto’ no mar que a tenha feito ponderar deixar de competir?
Os sustos fazem parte de ser bodyboarder, até porque o mar é imprevisível, mas felizmente nunca tive uma situação onde realmente temesse pela vida ou um acidente que me deixasse muito tempo em terra. O medo até é algo bom, mantém-nos mais presentes e atentos no momento, com os sentidos mais apurados, e ajuda a fazer escolhas mais calculadas.
A principal regra dentro de água é nunca perder a calma e o controlo em qualquer situação, o pânico é proibido porque, esse sim, pode ser fatal. É preciso respeitar o mar sempre.
Como se sente por regressar aos campeonatos depois de algum tempo parada por causa da covid-19?
Estivemos dois anos sem circuito mundial devido à pandemia e regressámos em maio deste ano com o arranque do circuito mundial 2022 no Chile. Estou muito feliz por voltar à minha normalidade, estava com muitas saudades de viajar e do ambiente competitivo. Percebi ainda que as competições são muito importantes para ter um objetivo real e tangível para o qual trabalhar.
Na verdade, agora que o circuito voltou e as primeiras etapas correram bastante bem, sei que continuo em forma e estou ainda mais motivada para as próximas etapas deste ano.
Então essa pausa acabou por ter um impacto positivo?
Sou muito sincera quando digo que, apesar de ser chato perder dois anos de oportunidades competitivas, esta pausa acabou por ter um impacto positivo na minha carreira. Deu-me tempo livre para realizar outros projetos além da competição para os quais nunca tinha disponibilidade, mas, mais importante ainda, relembrou-me o quanto gosto do que faço.
A paixão que tenho por este desporto e pela vida de atleta fez-me valorizar todas as oportunidades. No fundo ganhei uma vontade enorme de continuar, de ganhar mais títulos e de evoluir.
Qual foi a viagem que mais a marcou e porquê?
Todas as viagens deixam algo em nós, mas a mais marcante foi o Japão, pela sua cultura, pessoas, educação e pelo respeito que encontrei. O lugar mais bonito foi sem dúvida a Islândia; a paisagem é algo difícil de descrever, tão selvagem e intocada pelo Homem, agreste mas de cortar a respiração.
O bodyboard era muitas vezes considerado uma modalidade masculina, isto ainda é real?
O número de praticantes masculinos é ainda muito superior às femininas, essa ideia ainda existe mas vai-se dissipando lentamente. Há cada vez mais mulheres dentro de água, começamos a ser reconhecidas pelas nossas capacidades e o nível técnico das atletas femininas tem vindo a aumentar de ano para ano.
O que faz para promover a igualdade de género dentro do desporto?
Conheço muito bem a realidade da desigualdade de género dentro da modalidade. Fui durante vários anos a representante das atletas femininas dentro do circuito mundial, e é uma luta desgastante, a mudança é muito mais lenta do que gostaria de ver, mas estamos num bom caminho.
De lutar por melhores prémios monetários (muitas vezes o prémio da categoria feminina é um terço da categoria masculina) até ter melhores condições de mar quando estamos num evento (as mulheres competem quando as ondas estão piores), temos visto algumas mudanças positivas. É importante que as mulheres se unam e defendam o seu valor, o desporto feminino está cada vez mais visível, e o bodyboard precisa de acompanhar a tendência geral que visa chegar à igualdade de género.
Acha que as mulheres são tão competitivas quanto os homens ou existe um maior espírito de companheirismo?
Somos muito competitivas, mas de uma forma mais elegante do que os homens. Não demonstramos tanto as rivalidades e somos mais contidas tanto a festejar as vitórias, como a lamentar as derrotas. Porém, no bodyboard, o companheirismo é muito grande, a maioria das atletas são amigas, viajamos e treinamos juntas e o ambiente em competição é muito saudável.
Sente que aquilo que já alcançou pode ser inspirador para outras raparigas?
Quero acreditar que sim. Na minha opinião, é esse o papel do atleta na sociedade: inspirar. Devemos ser um agente social, e o desporto tem a capacidade de transmitir valores, mudar mentalidades e servir como exemplo do que é possível quando realmente queremos algo.
Aparenta ser uma pessoa descontraída e com uma abordagem à beleza mais natural. Acha que a sua geração se preocupa mais em manter uma autoestima positiva em vez de perseguir padrões irreais de beleza?
Sim, acredito que cada vez mais a noção de ser ‘perfeita’ está a desaparecer e começamos a valorizar as qualidades e as imperfeições que nos tornam únicas. É muito importante cuidarmos de nós, de nos sentirmos bem na nossa pele e ter uma autoestima saudável.
Acho que devemos ser a melhor versão de nós próprias sem medo. Nesta produção as leitoras podem ver as minhas cicatrizes, são queimaduras que aconteceram quando tinha 5 anos, num acidente com água a ferver na cozinha da minha mãe. Estão à vista e não foram retocadas, mas nem sempre tive a confiança para as mostrar quando era mais nova.
Sente que figuras do desporto como a Joana têm um papel importante nesta mudança de mentalidades?
Acho que sim, todas as mulheres que se mostram de forma real são as que contribuem para essa mudança de mentalidades. Todas temos inseguranças, mas sabemos que o nosso valor não assenta apenas na imagem, somos muito mais do que isso, e essa confiança é fundamental, especialmente para as raparigas mais novas, cuja autoestima é muitas vezes impactada pelas redes sociais.
Além do projeto Skin Protect Ocean Respect, existem outras iniciativas em que esteja envolvida?
Sou muito ativa em tudo que seja em prol de um oceano mais cuidado e saudável. O Schenker School Tour é um projeto ao qual me tenho dedicado de corpo e alma, é uma iniciativa conjunta com os meus patrocinadores, o Oceanário de Lisboa e a Fundação Oceano Azul, onde conto a minha história enquanto atleta. Durante uma hora, partilho as maiores lições que aprendi ao longo de 20 anos de competição, aliadas à importância do mar e da sua proteção.
No fundo, tento inspirar os jovens a terem uma atitude mais proactiva nas questões ambientais e também nas suas vidas. Qualquer escola portuguesa pode inscrever-se gratuitamente em www.joanaschenker.com. Em 2020, tive o privilégio de colaborar com o incrível fotógrafo subaquático e especialista em tubarões Fred Buyle para nadar e fotografar com os tubarões-azuis no Faial. Esta era uma iniciativa com o objetivo de alertar para a necessidade da sua proteção, foi uma experiência incrível e, claro, vou dinamizando limpezas regulares de praias na zona de Sagres.
Segundo as Nações Unidas, em 2050 haverá mais plástico do que peixe nos oceanos. Como ativista e devido ao contacto que tem feito em escolas, sente que ainda existe um longo caminho a percorrer em Portugal para esta preservação?
O problema é muito complexo e para o resolver são necessárias muitas mudanças urgentes em diferentes níveis, temos de dar prioridade ao mar tanto nas decisões políticas, como nas pessoais. Enquanto pessoas, é preciso mudar a forma como consumimos plástico, embalagens e peixe, é essencial sermos mais responsáveis.
O poder político também desempenha um papel fundamental, a criação de zonas marinhas protegidas é das medidas com maior sucesso para proteger a vida marinha, tal como implementar um sistema de tara recuperável em Portugal, proteger as espécies mais ameaçadas e apostar na fiscalização da pesca. Tudo isto são medidas que têm de acontecer simultaneamente para conseguirmos salvar o oceano a tempo.
Que pequenos gestos podemos fazer no dia a dia para diminuir o impacto ambiental?
Reciclar sempre, evitar comprar produtos muito embalados, reutilizar sacos de plástico, apanhar o lixo que vemos no areal, ter cuidado a comprar peixe e marisco para garantir que são de fontes de pesca sustentável ou, melhor ainda, ser vegetariano, comprar localmente. Porém, tudo isto é senso comum, o mais importante é realmente passar à ação e fazer qualquer coisa.
O que ainda pretende alcançar a nível profissional e pessoal?
A nível profissional, tudo o que havia para ganhar já foi conquistado, mas isso não me deixa menos ambiciosa para continuar a evoluir como bodyboarder e de lutar por mais títulos. O que mais quero é surfar bem e de forma bonita, e isso é um trabalho constante que não tem fim. A nível pessoal, sinto-me muito realizada, quero apenas continuar a partilhar esta paixão pelo mar e pelo desporto com o meu companheiro de longa data, que é também o meu treinador, temos vivido para isto e não podia estar mais feliz com a nossa forma de viver.
O que é para si Saber Viver?
É poder acordar e fazer o que mais gosto todos os dias, é ter uma missão na qual acredito com todo o meu coração, é saborear a vida e ter curiosidade pelo mundo, é estar contente com tudo o que tenho, mas a trabalhar para o que virá a seguir!
Que mensagem gostaria de deixar às leitoras Saber Viver?
Que está nas nossas mãos fazer escolhas que influenciam a nossa vida e o mundo em que vivemos! Que nunca se esqueçam do poder das nossas escolhas!