Marlene Souza trabalha numa área onde os homens dominam. E já foi recusada só por ser mulher
Como é que uma mulher se dá numa área de trabalho onde os homens são predominantes? O talento está lá, mas o preconceito também. Falámos com Marlene Souza que nos conta os obstáculos que enfrenta diariamente.
Se chamasse um profissional para ir a sua casa montar um móvel, fazer algum tipo de obra, tratar da canalização ou da eletricidade, e aparecesse uma mulher, confiava no seu trabalho ou desconfiava das suas capacidades?
A pergunta é simples, mas a resposta é complexa. E é por isso que falámos com uma mulher que, todos os dias, desempenha funções que ainda hoje são associadas a homens.
Marlene Souza tem 42 anos, já foi vitrinista, e está inscrita na aplicação TaskRabbit, uma plataforma de serviços que envia um profissional a sua casa para as mais diferentes tarefas (isto inclui montagens de móveis, reparações, pinturas, serviços de mudanças, de limpeza, instalações, entre outras) onde trabalha a full-time.
“Em várias situações, logo no primeiro contacto que faço para confirmar a tarefa, quando percebem que sou mulher, perguntam-me se tenho ferramentas. Ao que respondo sempre para não se preocuparem que levo sempre as minhas. Já me disseram que não deviam mandar uma mulher sozinha para tanto trabalho”, diz-nos Marlene que admite que, no final, os clientes reconhecem sempre a qualidade do seu trabalho. Porém, até lá chegar, nem todos os primeiros contactos são fáceis.
“Ao nível de ofensa, inocente, claro, aconteceu com um senhor que, ao abrir a porta, disse-me: ‘se eu soubesse que era tão fácil, fazia eu’. Mas depois, quando viu os vários puzzles por montar, lá reconheceu que, afinal, até havia alguma ciência”.
A Saber Viver falou com Marlene Souza sobre ser mulher num mundo de homens.
Entrevista a Marlene Souza
Como aconteceu ir trabalhar para a TaskRabbit?
A seguir ao confinamento, fui ‘passear’ e fiquei em casa de uma amiga. Chegámos à conclusão que era difícil arranjar pessoas para fazer alguns trabalhos que precisávamos, como pintura. E isto era uma coisa que eu já sabia fazer, então, fiz eu. Já estava inscrita na TaskRabbit e quando começou a funcionar cá comecei a trabalhar.
Como funciona a aplicação e quanto é que pode custar ao cliente?
Funciona mais ou menos como a Uber Eats. Cai uma tarefa, se tiver menos de oito horas é distribuída aleatoriamente. Entramos em contacto com um cliente através de mensagem ou chamada para confirmar as horas e a morada e aparecemos na casa da pessoa na data e hora previstas. Os preços dependem, mas, por exemplo, a montagem de móveis ronda os 9,50€ à hora.
Que tipo de trabalho é que faz?
Faço montagens de móveis, pinturas, colagens de papel de parede, faço pequenos arranjos de canalização e eletricidade. Resumidamente, arranjo várias soluções para as casas. Muitas vezes as pessoas não têm paciência para pensar nestas soluções.
Como é que aprendeu a fazer esse tipo de tarefas?
Foi pelo vitrinismo. Tínhamos de montar candeeiros, furar paredes e outras coisas e, claro, tivemos de aprender.
Gosta do que faz?
Gosto. Entre estar sentada o dia todo e andar de um lado para o outro a fazer este tipo de coisas, prefiro mil vezes andar de um lado para o outro.
Como é trabalhar numa área que é maioritariamente masculina?
Acaba por ser engaçado porque eu levo isto tudo com humor. Ainda assim, há pessoas a recusar o serviço quando sabem que é uma mulher.
Basicamente eu chego, faço o trabalho e, por muito que duvidem, os clientes querem é ver o resultado final e, quando o veem, é exatamente igual como se tivesse sido feito por um homem. Às vezes perguntam se eu tenho ferramentas, pergunta à qual respondo “vocês sabem que as ferramentas não são só uma coisa que os homens podem comprar”. Gosto do desafio de arranjar soluções.
Houve algum episódio preconceituoso que a tenha marcado?
Só tive uma situação muito má. Cheguei a casa de um casal e ouvi “você não vai conseguir fazer isto”, “você sozinha não vai conseguir fazer isto”, “porque é que mandam uma mulher fazer isto”. Estive lá durante muitas horas e aquele casal só dizia que não ia conseguir fazer o trabalho. Ainda para mais, compraram mau material para fazer um projeto praticamente impossível, com uma parede torta e um chão torto. Acabei por chamar um colega para me ajudar porque, na verdade, eles só queriam um homem que lhes dissesse como é que estava a correr.
Quando ele lá chegou disse que eu trabalhava super bem, que a obra em questão era uma missão impossível e que eu estava a fazer o melhor que podia. Outro empregado deles foi lá e disse exatamente a mesma coisa. Esta foi sem dúvida uma experiência má.
Muitas vezes, quando chega a casa dos clientes, as pessoas acham que é uma secretária…
Exato. Muitas vezes perguntam pela equipa e eu digo que a equipa sou eu. “Pois, mas achávamos que estava só a fazer a ligação entre a empresa e os homens que vinham cá montar as coisas”. Este é o tipo de coisas que já cheguei a ouvir.
Acha que, na sua área, esta mentalidade já está a mudar?
Para ser sincera, ainda faltam muitos anos, mas tem de se começar por algum lado. É importante começar a haver mais mulheres a fazer este tipo de trabalho.
Quando começou a trabalhar nesta área achou que poderia enfrentar algum obstáculo a desempenhar estas tarefas? Teve esse preconceito consigo mesma?
Não. Até porque eu faço sempre os trabalhos de casa e vejo o que tenho de montar ou fazer. Se tiver de lidar com coisas mais pesadas, arranjo sempre um esquema para fazer tudo sozinha. Por exemplo, às vezes tenho de montar um beliche sozinha, e claro tenho de encontrar uma solução para ser mais fácil para mim.
A Marlene utiliza muito o humor para lidar com certos tipos de situações, não é verdade?
Sim, é o melhor. As pessoas questionam, mas o resultado é bom.