Nunca é demais dizer não ao racismo
O preconceito racial está enraizado na sociedade, mas nunca como hoje esteve tão na ordem do dia. Está nas mãos de todos acabar com os preconceitos e não, não estamos a falar de uma moda, mas de um movimento que tem de ser permanente.
“Não consigo respirar.” Foi esta a frase que George Floyd disse mais de 20 vezes antes de morrer sufocado pelo joelho de um polícia em Mineápolis, nos Estados Unidos da América (EUA), e que ecoou pelo mundo num vídeo de oito penosos minutos que testemunhou o homicídio.
Este caso, ocorrido em maio, teve repercussões nos vários continentes e foram milhares as pessoas que saíram à rua, apesar de estarmos em plena pandemia, para combater o racismo sistémico e estruturado, tantas vezes escondido.
Portugal não foi exceção, com milhares de pessoas a dizer ‘presente’ nas marchas com o slogan #blacklivesmatter convocadas para diversas cidades do País. Contudo, não é preciso olhar para o outro lado do Atlântico para encontrar exemplos de racismo.
Só em 2020, Portugal já teve quatro casos mediáticos: o de Cláudia Simões, espancada pela polícia depois de um motorista se ter queixado de que a filha viajava sem título de transporte; o de Marega, jogador do Futebol Clube do Porto, que se recusou a continuar em campo devido aos insultos racistas dos adeptos do Vitória de Guimarães; o homicídio do ator Bruno Candé, que, segundo testemunhas, foi mandado “para a sua terra”, enquanto foi alvejado por quatro tiros à queima-roupa; e, mais recentemente, a ameaça por email às deputadas Beatriz Gomes Dias, Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda) e Joacine Katar Moreira (deputada não inscrita) e a Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, entre outros, a intimidá-las abandonar o “território nacional” em 48 horas.
O peso da História
Para quem ainda tem dúvidas sobre se existe racismo em Portugal, o último European Social Survey dá uma resposta clara: 62% dos portugueses manifestam racismo e apenas 11% discorda de todas as crenças racistas.
A pergunta que se impõe é: como é que, em pleno século XXI, ainda persistem estes preconceitos?
Bruno Sena Martins, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, diz que “temos de olhar para o impacto do racismo na nossa sociedade de uma perspetiva que necessariamente dará um olhar histórico sobre a realidade.”
“Nesse sentido, temos de perceber que as sociedades de hoje são constituídas sobre um legado daquilo que foi um longo tempo colonial, marcado pela experiência da escravatura, no qual se fundou o mundo capitalista. Todas essas formas de organização social foram marcadas por uma subjugação dos corpos negros, uma hierarquia entre humanos que defendia humanos válidos e formas de sub-humanidade”, explica.
O também cocoordenador do programa de doutoramento Human Rights in Contemporary Societies, do mesmo Centro de Investigação, lembra que, em Portugal, o período colonial não acabou assim há tanto tempo.
“O 25 de abril foi uma importante revolução democrática, mas ainda não se fez uma completa descolonização do passado português”, refere.
Para Maria José Núncio, professora de Sociologia do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, a persistência do racismo nas sociedades atuais resulta da transmissão geracional, na família, na escola, nos grupos sociais.
“Nesse sentido, o racismo é um fenómeno social herdado”, diz a socióloga, lembrando que “o racismo é um preconceito, resultado de estereótipos ou generalizações acerca do outro, ou seja, daquele que é diferente, na cor da pele, mas também na religião, na pertença étnica ou na cultura”.
“De alguma forma, está presente hoje como esteve presente em todas as sociedades e em todos os tempos e é uma espécie de reação à diferença, resultado do desconhecimento dessa diferença, que leva a categorizar e a generalizar, negando ao outro, ao que é diferente, o direito à sua individualidade”, remata a professora.
O perigo da negação
A negação do racismo tão comum no nosso País é perigosa. “Existe racismo em Portugal, como existe racismo em qualquer país do mundo. O perigo está também na negação da sua existência, porque pode levar à desvalorização social de fenómenos de preconceito ou violência causados pelo racismo” revela Maria José Núncio.
“Acho que se desenvolveram os mitos do ‘país de brandos costumes’ e do historial de miscigenação nos territórios coloniais, e estes mitos serviram para negar a existência de racismo”, acrescenta a socióloga.
E, enquanto isso vai acontecendo, o Chega, partido de extrema-direita com assento parlamentar, vai-se apropriando do racismo como mote de manifestações.
“A apropriação é, justamente, por via da negação, fundada nestes mitos acerca de Portugal e dos portugueses. Depois, há um discurso fácil e básico que promove uma dicotomia na sociedade portuguesa, fundada num outro mito, que é o de as minorias étnicas beneficiarem de apoios sociais pagos pela maioria. É uma generalização muito básica, mas que vai ao encontro da insatisfação das pessoas relativamente às suas condições de vida, e capitaliza essa insatisfação e os receios face ao futuro”, sublinha Maria José Núncio.
O investigador do CES acrescenta que “teremos sempre os guardiões do templo que querem que as coisas permaneçam como estão e isso, no fundo, é acreditar que não existe racismo em Portugal. Os discursos populistas deturpam de forma engenhosa aquilo que são os objetivos do antirracismo para criar um nacionalismo defensivo na sociedade portuguesa, que é algo que se vê nesses movimentos políticos que estão a tentar alargar o seu eleitorado”.
Para Bruno Sena Martins, “ter a humildade de conhecer a realidade a partir daqueles que a sofrem” é um ponto de partida para acabar com essa negação.
“Para quem, como eu, tem um corpo negro, é evidente que o racismo atua todos os dias, às vezes de forma muito subtil e insidiosa. Quantas vezes não ouvi a frase ‘tu és quase branco’ dita como se fosse um elogio”, exemplifica.
A mudança está em todos
Acabar com o preconceito, como diz a socióloga, é uma ação que “está em cada um de nós e começa hoje. E é fundamental a nossa consciência de que as nossas atitudes, comportamentos e linguagem influenciam os outros, o que faz com que todos sejamos, também, responsáveis pelo coletivo”.
Ideia semelhante tem a médica e ativista humanitária Lokas Cruz: “Cada um de nós tem de interiorizar que há anos que pactuamos com um sistema que privilegia quem é branco, algo que é ilegal. Claro que é desconfortável sabermos que somos cúmplices, mas mais ainda é sabermos isso e não fazermos nada.”
“Cabe a cada um de nós questionar os decisores políticos que continuam a perpetuar o racismo estrutural, não incentivar discursos racistas e ir para a rua defender os direitos humanos, porque é disso que se trata”, acrescenta.
Para a ativista, é importante “entender que o racismo não é uma opinião, mas sim uma questão de direitos humanos, que são constantemente violados”.
“Os princípios antirracistas devem tocar todos os que acreditam nos direitos humanos, na justiça social e na democracia. É muito importante que todos percebam que vivermos numa sociedade não racista é também vivermos numa sociedade mais igual, justa, democrata e menos violenta”, acrescenta o investigador do CES.
Políticas afirmativas
Além dessa mudança individual, há alterações estruturais que são fundamentais.
Bruno Sena Martins acredita na relevância das estatísticas: “Seria muito importante fazer algumas estimativas como aquelas que foram produzidas para a questão de género, ou seja, saber qual a percentagem da população negra que acede à universidade, que está empregada, que está numa situação de precariedade económica, entre outros dados, que permitiriam construir políticas públicas afirmativas, que ajudassem a suprir essas formas de desigualdade. Para isso, era necessário haver uma recolha étnico-racial nos sensos, que tem sido recusada.”
Outra questão que o investigador do CES considera importante é a representatividade. “Vou dar um exemplo que conheço bem, o do Brasil. As políticas de quotas, iniciadas timidamente em 2003 e, mais decididamente a partir de 2010, tiveram a capacidade de permitir, em pouco tempo, um significativo ingresso de estudantes negros no ensino superior público.”
Bruno Sena Martins acredita “obviamente na ideia de igualdade de oportunidades e de meritocracia se realmente essa igualdade de oportunidades existir, mas, perante um sistema desigual, essas políticas afirmativas são muito importantes para criar representatividade aliada à justiça social”.
Por sua vez, Maria José Núncio assegura que “a nível das políticas públicas, as políticas de educação e de justiça são fundamentais. A educação, pelo seu papel nas gerações futuras. A justiça, pela valorização e maior punição de atitudes que configuram racismo. A mudança de mentalidades promovida pela educação conduzirá a uma maior representatividade e pluralidade étnica em órgãos decisórios ou de maior visibilidade social”.
A arte como resposta
A repercussão do homicídio de George Floyd chegou à arte e foram muitos os artistas urbanos que se manifestaram através de murais contra o racismo e a violência policial.
O português Bordallo II foi um desses casos e desenhou numa passadeira sete bonecos de mãos dadas aos quais, no Instagram, juntou a legenda “Qualquer que seja a nossa cor, temos de permanecer juntos e dizer não ao racismo”.
A cantora Selma Uamusse não tem dúvidas de que a arte tem uma palavra a dizer no combate ao racismo. À semelhança do que faz no seu novo álbum, Liwoningo, a cantora moçambicana diz que tem utilizado sempre a música como uma ferramenta de comunicação daquilo que gostaria de ver no mundo à sua volta.
“Uso-a sempre como uma arma de amor, para chamar a atenção e sensibilizar e, no caso deste disco, uso-a como uma arma contra a indiferença. É obrigatório que a arte intervenha na sociedade e não é que todos os músicos tenham de fazer música de intervenção ou ativista, mas, enquanto artistas, acabamos por ter o poder de falar para as pessoas que nos ouvem e nos veem.”
A escritora norte-americana Sharon Cameron, autora do livro Uma Luz na Escuridão (Planeta), que conta a história de Stefania Podgórska, uma adolescente polaca que escondeu 13 judeus no seu sótão durante a Segunda Guerra Mundial, também acredita que “a literatura e a arte são peças-chave na luta antirracista, especialmente a ficção. Precisamos de conhecer a História e os factos, mas os seres humanos respondem às formas de arte que envolvem as suas emoções.”
“Quando lemos uma história como a que escrevi, não estamos apenas a aprender factos sobre a experiência de uma jovem durante o Holocausto. Estamos a sentir a experiência de uma jovem durante esse período. Estamos dentro da sua cabeça, caminhamos pelos seus pés, estamos a perceber a sua vida. Através da história, ganhamos empatia, e ter empatia pelos outros, especialmente pelos que são diferentes de nós de alguma forma, é exatamente aquilo de que nosso mundo mais precisa hoje. A história e os factos poderão desaparecer da memória, mas, quando sentimos a alegria de outra pessoa ou sentimos a sua dor, é algo que não podemos esquecer. A empatia muda-nos e é o primeiro passo a dar para curar o nosso mundo”, esclarece.
A escritora acredita que “o ódio que acendeu a chama da Segunda Guerra Mundial continua vivo. Temos de lembrar para que o horror e a morte de tantos inocentes jamais voltem a acontecer”.
Empatia e respeito
Empatia também é uma palavra-chave para Selma Uamasse. “É muito importante educar para a empatia, que passa muito por parar e ouvir o outro, mesmo que tenha uma opinião diferente da nossa”, diz a cantora, para quem falar de racismo é fundamental.
“Finalmente, estamos a ter oportunidade de ter esta conversa. O racismo tem-se apoiado no silêncio de quem sofre e agora essas vozes já não estão silenciadas; é tempo de sarar uma ferida que tem séculos e esteve encoberta demasiado tempo, mas que agora está exposta.”
A esse propósito, Selma Uamasse lembra a frase que Will Smith disse após a morte de George Floyd: “O racismo não está a piorar, está é a ser filmado”. Quando ouve alguém a negar o racismo, a cantora diz que é doloroso “porque é ignorar o que eu e outras pessoas sofremos”.
Frases como “vai para a tua terra” ou “és uma negra diferente” ouviu-as muitas vezes, conta-nos, quando lembra também um episódio num comboio algures na Europa, quando se viu impedida de passar a fronteira e foi avisada pelo dono do bar da estação para não entrar no dito, porque estava cheio de skinheads.
Mas mais do que lembrar esses episódios, Selma Uamusse está focada em lutar para que as filhas, de 9 e 8 anos, não tenham de passar por nada semelhante. Às duas a mensagem que passa é “que existe muita beleza na diferença e que não somos todos iguais, mas merecemos todos ser respeitados”.