Sociedade

Saber Viver é... Amarmo-nos como somos

Já muito descobrimos, errámos, aprendemos, desaprendemos. Os clichés são verdade; a grande jornada da vida escreve-se certa por linhas tortas e, nestes 20 anos de existência, muito temos discorrido no papel (e online) sobre a forma como escolhemos viver a vida.

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Saber Viver é... Amarmo-nos como somos Saber Viver é... Amarmo-nos como somos
© GRAFISMO: SARA MARQUES/ © rawpixel
Escrito por
Out. 15, 2022

Amarmo-nos como somos ou deixarem que nos amemos como somos? É que uma das grandes mudanças destas últimas duas décadas – mas também uma das que mais continua a precisar de atenção – refere-se ao poder sobre o corpo feminino.

“Se eu não gostar de mim, quem gostará?!”, questionava- nos um pacote de leite, mas como posso fazê-lo se estou sempre a receber mensagens de todo o lado a dizer-me que sou imperfeita?

A ditadura sobre o corpo feminino tem encontrado momentos e movimentos de resistência e aqueles que a ditam e moldam têm inevitavelmente feito parte desta revolução: um dos exemplos mais citados refere-se ao antienvelhecimento, palavra inclusive excluída por ‘bíblias’ do universo da beleza, como o caso da revista Allure, que decidiu abolir o termo das suas páginas em 2017.

Ao mesmo tempo que os procedimentos estéticos se tornam tão (ou mais) comuns que uma ida ao dentista, há quem debata o peso da cosmética na autoestima feminina.

Teresa Ancêde, especialista de comunicação da agência Pondera, é uma delas. “Cada vez mais evitamos usar a expressão antienvelhecimento, nós enquanto marcas não queremos parar o tempo e falamos com um consumidor informado. Privilegiamos termos relacionados com a prevenção, e os próprios produtos esforçam-se por estimular os próprios componentes naturais da pele. A Caudalie tem uma frase slogan que resume muito bem esta política, ‘Qual é o melhor colagénio? O teu’”.

As marcas deixaram de querer parar o tempo – até porque isso seria só impossível para não dizer estapafúrdio –, mas acompanhar-nos na nossa melhor versão de nós mesmos. Uma vontade que acabou por ser imposta por um cliente cada vez mais consciente e empoderado, que exige rever-se nas suas escolhas de consumo, desde as campanhas ao vocabulário.

O pronto a vestir trouxe uma democratização. Claro que essa democratização também implica vários níveis de consumo e para consumir é preciso poder consumir – Cristina L. Duarte, socióloga

Na moda, a mesma lógica de pensamento. “É difícil falar de forma objetiva porque 20 anos não é muito tempo – há imensas camadas que podem entrar em análise”, começa por advertir a socióloga Cristina L. Duarte à questão sobre o debate das mudanças no panorama nas últimas duas décadas.

Olhando para o século passado, aponta a subida da bainha das saias e analisa de que forma podemos falar de algo tão vertiginoso nesta era. “Nos estudos feministas, fala-se de algum backlash ou retrocesso a seguir a uma certa emancipação por parte das mulheres e o que querem afirmar de si – sendo o corpo um desses fatores. Como se a sociedade lançasse o alerta ‘espera, espera que aí também é muito’, há uma luz vermelha.”

Há questões que surgem – como o que motiva uma repreensão por um corpo que se exibe – e Cristina recorda uma das suas entrevistadas do seu estudo e tese O Género como Espartilho, que falava da nudez como uma forma de uniformização.

Um dos pontos mais marcantes destes primeiros 20 anos é, para a socióloga e outros estudiosos da área, como Gilles Lipovetsky, o consumo desenfreado e a felicidade paradoxal que acontece quando consumimos algo que não precisamos.

“O pronto a vestir trouxe uma democratização. Claro que essa democratização também implica vários níveis de consumo e para consumir é preciso poder consumir. Mas a partir do momento em que se entra nos últimos 20 anos numa fase de fast fashion, em que o consumo passa a ser mais desenfreado do que alguma vez foi, então pode-se falar disso como algo que vai permitir a mudança ou que toda a gente consuma de uma forma que não consumia antes.”

Mas, claro, “quando tens o corpo das mulheres envolvido, há logo debate”, adverte a socióloga.

Tendências recentes como o regresso da ‘nudez’ dos anos 2000 para as passerelles, a reformulação dos desfiles da Victoria’s Secret ou a forma como as mulheres dos dias de hoje celebram a gravidez e a barriga são palpações possíveis para um futuro risonho, mesmo que não sejam reveladoras do quotidiano que continua a difundir o corpo da mulher associado a diferentes estereótipos.

Pelo bem do nosso amor-próprio, precisamos de celebrar, atentar e militar por atos que nos digam “este é o meu corpo, estou bem assim, esta sou eu”. É como escreve Naomi Woolf no seu tão necessário livro: “O mito da beleza prescreve comportamentos, não a aparência“.

A versão original deste artigo foi publicada na revista Saber Viver nº 268, outubro de 2022.

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