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Entrevista. Ter a liberdade para decidir

Entrevista. Ter a liberdade para decidir

No mês em que se comemoram 50 anos de democracia em Portugal, conversámos com três jovens que correram atrás dos seus sonhos, porque a liberdade de se ser quem é continua a ser tão importante hoje como era há meio século.

Por Abr. 25. 2024

A 25 de abril, Portugal celebra os 50 anos da Revolução dos Cravos. Foi ela que pôs fim a uma ditadura de 48 anos e, se há alguns anos ninguém poria em causa os direitos que fomos adquirindo com a democracia, hoje em dia, o retrocesso está à espreita como mostra a subida do populismo em toda o mundo, e o nosso País não é exceção. Basta olhar para os resultados das eleições legislativas de março para o perceber. Portanto, sim, faz sentido continuarmos a falar da importância de uma sociedade livre, que deixe espaço para se sonhar e ir atrás dos objetivos.

Por isso, neste artigo damos voz a três jovens que lutam por aquilo que sempre sonharam. Falamos da produtora Mariana Martinho, que escolheu ter um percurso profissional pouco linear, do criador de conteúdos digitais Kiko is Hot, que desde os 16 se mostra tal como é na Internet e da jornalista desportiva e comentadora de futebol Mariana Fernandes, que, apesar de não ter muitos exemplos femininos na sua profissão, nunca deixou que isso a limitasse.

Mariana Martinho

Livre para ser muitas coisas

Nasceu em Aveiro, licenciou-se em Gestão e Administração de Empresas na Universidade Católica, em Lisboa, fez mestrado em Gestão Internacional na Hult International Bussiness School, em Londres, cidade onde trabalhou em startups de tecnologia, tal como fez em Berlim. Com este trajeto, o mais certo seria que o seu percurso profissional passasse pela área de Gestão. Mas um percurso linear não estava nos seus planos.

Gosto de fazer demasiadas coisas e não gosto de rotinas, mas claro que cresci a pensar que só poderia fazer uma coisa. Felizmente a minha inquietude fez com que percebesse que não ia fazer aquilo para sempre”, explica Mariana Martinho, que atualmente é produtora de cinema e tem uma marca de tapetes de ioga, a Ego Selfcare, mas que ainda poderá ser muitas mais coisas.

Mente aberta

O ponto de viragem foi quando decidiu fazer o curso de health coach online do Institute of Integrative Nutrition de Nova Iorque durante um ano. Foi julgada pela sua decisão, mas, como diz, precisava de procurar o que a preenchia. O ter vivido em vários pontos do mundo, o ter sido atriz aos 16 anos (participou nos Morangos com Açúcar e no filme Uma Aventura na Casa Assombrada) e ter feito voluntariado em Timor Leste, também fez com que tivesse uma mente mais aberta e que não ficasse presa a uma escolha feita cedo de mais.

“É muito ingrato termos de decidir a área que vamos estudar tão cedo, porque ainda não nos conhecemos nem vivemos o suficiente para perceber o que queremos ser. Mas também não é a decisão mais importante da nossa vida e não pode ser isso a limitar-nos quando não estamos satisfeitos. No limite, vamos sempre aprender alguma coisa”, afirma.

O papel do autoconhecimento

Mariana Martinho diz que foi o autoconhecimento que a tornou livre. “Este processo de me descobrir foi muito rico e atribulado e foi fundamental quando me senti um bocado perdida. Tive de perceber o que fazia sentido para mim e o que me movia”, conta. Na altura, teve a consciência de que tinha sido formatada para um conceito de sucesso diretamente relacionado com a profissão.

“Todavia, uma pessoa bem-sucedida é alguém que está bem com ela própria, que vive bem, que é alegre, que aproveita os seus dias da melhor forma possível. Quando percebi isto, senti-me uma pessoa muito mais livre, porque comecei realmente a procurar o meu sucesso, que é conseguir ser o mais feliz possível em todas as áreas da minha vida”, sublinha. Essas descobertas fizeram com que escrevesse o livro Uma Viagem para a Vida (Oficina do Livro). “Não foi planeado, mas sinto que esta minha viagem interior pode inspirar outras pessoas que estão na mesma situação a fazer o mesmo”, refere.

O conselho de Mariana Martinho para todos aqueles que querem ser lives “é conhecerem-se e atuarem segundo a vossa essência”.

Liberade é conhecermo-nos a nós próprios e atuarmos segundo a nossa essência. É conseguirmos enfrentar os nossos medos e utilizá-los de forma positiva para construirmos. É saber que querer é poder e que cada decisão da nossa vida nos aproxima mais dos nossos sonhos. É libertarmo-nos de conceitos preconcebidos e criarmos os nossos próprios conceitos – Mariana Martinho

Kiko is Hot

A verdade acima de tudo

Aos 16 anos, Francisco Soares, criador de conteúdos digitais e ator, apresentou-se ao mundo como Kiko is Hot no seu canal de Youtube, corria o ano de 2011, e nunca mais parou. Foi dos primeiros youtubers em Portugal e o primeiro da comunidade LGBTQIA+. Se na escola aparentava ser antissocial, à frente do ecrã era muito comunicativo e os seus vídeos a maquilhar-se foram captando seguidores.

“Não sei bem como tive coragem, ainda para mais sendo tão novo, mas o poder de ser verdadeiro e perceber que há mais pessoas como tu e a pensarem como tu fez a diferença”, refere. No entanto, sublinha que “a liberdade é uma coisa que assusta as pessoas e o sistema de poder. Portanto também atraí muitos comentários negativos. Mas não me autorizei a parar. Acho que o meu cérebro bloqueou a violência e sabia que era o caminho certo e não faria sentido deixar a minha paixão porque havia pessoas que não gostavam”.

Presença política

Hoje, com quase 30 anos, a sua plataforma de eleição é o TikTok e, no dia em que fi zemos a entrevista, ultrapassou os 100 mil seguidores, feito conseguido em apenas um ano. O segredo, diz, é não seguir modas. “Sou sempre eu próprio, nem ponho a hipótese de não fazer algo só porque as marcas poderão não gostar. Ao ser verdadeiro também inspiro os outros a sê-lo. Não é fácil crescer numa escola em que mais ninguém é como tu, há muita solidão e a Internet ajuda a perceber que não estamos sozinhos”, realça.

@kikoisveryhot #fyp ♬ som original – kikoishot

Kiko afirma que a sua presença online será sempre política. “Fazer o que eu faço tem sempre um tom político pelo simples facto de não haver muitas pessoas como eu. Quando olhamos para qualquer canal de televisão não há representividade suficiente de pessoas como eu.” Sonhos ainda tem muitos. “Gostava de me aventurar mais na representação e também de apresentar um programa na televisão. Quanto mais cresço, mais vontade tenho de aprender e acho que uma forma de o fazer é conhecer pessoas e falar com elas”, refere.

A luta continua

Quando olha para a sociedade e mede o grau de liberdade em que vivemos, Kiko is Hot diz que há uns anos diria que estávamos no bom caminho. “Depois destas eleições, já não sei… Tenho receio de que os direitos humanos que garantimos não estejam garantidos e que voltemos atrás.

Preocupa-me que a sociedade esqueça o passado e que não consigamos perceber que estamos a repetir exatamente a mesma coisa à qual apontámos o dedo. De repente, o aborto é questionado, o problema são os imigrantes… E quando isso é mascarado de bons valores, não sei onde vamos chegar”, afirma. O que lhe dá mais receio neste momento é que as pessoas percam o mais essencial, que é a capacidade de empatia com o próximo.

Liberdade é conseguirmos ser aquilo que somos, gostarmos de quem gostamos e, no fundo, termos os mesmos direitos de toda a gente, que em muitos casos e em muitos sítios ainda não é a realidade. A liberdade é exprimirmo-nos como queremos e isso não ser alvo de crítica ou não sermos olhados de forma diferente por causa disso – Kiko is Hot

Mariana Fernandes

O futebol não é coisa de homens

Ser jornalista foi sempre o objetivo, mas não se lembra de quando começou a pensar no desporto. “Sempre gostei de futebol, portanto, foi uma coisa muito natural. Nunca tive dúvidas e deixei logo bem claro que era isso que queria fazer”, conta Mariana Fernandes, jornalista desportiva n’Observador e comentadora de futebol na SIC Notícias. Como a própria diz, a sorte poderia não ter ajudado, mas ajudou e, quando começou a trabalhar, fê-lo na secção de desporto do jornal citado. A vontade era tanta que nem o facto de não haver muitas mulheres na sua profi ssão, a fazia duvidar.

“Se calhar era um pouco ingénua, mas nunca pensei nisso, talvez porque os meus pais nunca me limitaram e por ter sempre achado que se fosse boa iria conseguir. Acho que hoje tenho mais noção de que somos mesmo poucas”, refere. Por parte dos colegas nunca sentiu questionarem o seu conhecimento por ser mulher, já por parte dos espectadores, desde que começou a comentar futebol, é uma constante.

“A larga maioria dos comentários negativos que recebo não são por aquilo que eu digo, mas por ser uma mulher a dizer aquilo. Se fosse um homem a dizer exatamente o mesmo, era ‘simplesmente’ criticado. Eu tenho de levar sempre com comentários como ‘O que percebes disso?‘; ‘Já alguma vez jogaste futebol?’. Só para citar alguns”, descreve.

Um sonho por concretizar

Mariana Fernandes começou a fazer comentário futebolístico aquando da abertura da CNN Portugal, em 2021, e confessa que não estava preparada para que as pessoas fossem tão agressivas, mas também afi rma que isso não a limita. “Quando dou uma opinião, não estou a pensar nas reações que vai gerar nem me deixo castrar por isso”, diz.

O sonho que fi cou por concretizar foi o de ser jogadora de futebol e fica feliz por as meninas já poderem lutar por uma carreira profi ssional. “Nunca joguei futebol a sério, porque sabia que não havia forma de ser profi ssional. Hoje, felizmente, uma rapariga que gosta de jogar futebol e é boa a fazê-lo tem capacidade para olhar para a frente e até já tem ídolos mulheres, como a Jéssica Silva e a Kika Nazareth”, afirma.

Não desistir

Quando a questionamos sobre o melhor conselho que pode dar quando o tema é seguir os sonhos e objetivos, Mariana Fernandes não tem dúvidas: “É não desistir. Existem muitas difi culdades, mas se nós soubermos que é aquilo que queremos fazer, é olhar sempre para o sítio onde queremos chegar, independentemente do que nos disserem”, exclama.

Usando a linguagem futebolística, a jornalista diz que hoje em dia olhamos para os outros como adversários em vez de caminharmos lado a lado. “Dificilmente, seja em Portugal, seja no resto do mundo, se chega algum lado enquanto sociedade se estivermos constantemente virados de costas para o outro e para o diálogo”, remata Mariana Fernandes.

Adotei uma frase da Nina Simone da qual gosto muito: a liberdade é não ter medo. É poder fazer aquilo que faço e de ser a pessoa que sou, é poder falar ou escrever de futebol ou de outra coisa qualquer, é estar onde eu quero estar e não ter medo das consequências. É viver a minha vida da forma como eu quero sem ter medo – Mariana Fernandes
A versão original deste artigo foi publicada na revista Saber Viver nº286, abril de 2024.
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