“A quantidade de ódio gratuito, na maioria vindo de mulheres, foi algo que não esperava”
Sara Sequeira levantou o debate sobre assédio sexual quando recebeu comentários impróprios de um trabalhador da CP em relação ao que tinha vestido. O seu testemunho sobre o assunto deveria ser lido por todos, mulheres e homens.
“São coisas de Homens”. Quantas vezes ouvimos esta frase? Talvez vezes demais. São coisas de homens quando mexem no nosso corpo sem consentimento. São coisas de homens quando buzinam ao passar por nós, são coisas de homens quando abrandam o carro à nossa beira, são coisas de homens quando mandam fotografias dos genitais sem o nosso consentimento, são coisas de homens quando comentam o nosso corpo sem o mínimo de respeito. MAS SÃO HOMENS!
E quando o assédio acontece de mulheres para homens? Não, não são coisas de mulheres! São coisas de mulheres que não “jogam com o baralho todo”, são coisas de oferecidas, entre outras coisas negativas e destrutivas.
O assédio não é igual para ambos os sexos, pelo contrário. Se um homem denuncia um caso de assédio, a sua masculinidade é posta em causa. Se uma mulher denuncia ou fala de assédio é agredida verbalmente.
As agressões não passam apenas por nomes com significado de “mulher da vida”, mas passam também pela imagem que a sociedade tem da mulher. O interesse e a dependência financeira!
Este ano, enquanto passageira, tive de levar com um comentário do mais baixo nível pela parte de um revisor que, depois de fixar o meu decote, disse: “Ainda bem que não está frio ou as mamocas constipavam-se”.
Apresentei queixa no livro de reclamações e decidi confrontá-lo e dizer que aquele cometário tinha sido uma falta de respeito tremenda e que iria reportar pessoalmente a um superior dele.
No decorrer da conversa, ele começou a culpar-me dizendo que a culpa era minha porque andava na rua com aquele vestido e que estaria a provocar os homens, como se andar de vestido desse o direito de alguém dizer o que quer e bem apetece. A discussão estava a ser tão machista e os argumentos estavam a ser tão “perigosos” que achei por bem gravar.
Eu já falava destas situações nas minhas redes sociais, querendo ou não, isto é o dia a dia da maioria das mulheres. Partilhei o vídeo e em dois dias tornou-se viral.
Não, eu nunca imaginei que aquele vídeo fosse viral, e muito menos imaginei o que veio a seguir: uma chuva de insultos e ameaças. Tanto que tive de pedir a uma amiga minha para tomar conta das minhas redes sociais (que são uma ferramenta importante de trabalho para mim).
A quantidade de ódio gratuito, na maioria vindo de mulheres, foi algo que não esperava. As mulheres atacavam mais o meu corpo e a minha exposição. Os homens usavam mais um argumento primitivo como: “Se ele tivesse um bom carro, a conversa era outra”.
Nunca percebi este argumento. Nem sei em que mundo é que estas pessoas vivem. Um carro não faz o homem. E se tivesse um bom carro? Seria suposto gostar de ser importunada só para admirar o carro e voltar para casa a pé? Se uma mulher gosta de um bom carro, ela irá trabalhar para tê-lo. A mulher não é, nem deve ser, a sombra do homem.
Mas o que me preocupa mais são os comentários de mulheres que dizem que “uma mulher tem de se dar ao respeito”. Todas as pessoas são passíveis de respeito. O respeito não é algo que tenhamos de ganhar. O respeito é o princípio de todos os direitos básicos, sejam homens ou mulheres.
O grande problema reside na objetificação da mulher. E a prova de que a mulher é ainda tão objetificada passa pela necessidade de satisfazer os padrões de beleza impostos pela sociedade.
Engraçado que quando uma mulher consegue atingir um certo padrão ou é considerada “bonita”, é considerada automaticamente “fútil”. Como se uma mulher não pudesse ser bonita e inteligente. Ou se uma mulher tem ideias fixas, é mandona. Se uma mulher é feminista, é de esquerda. Entre tantas coisas.
A mulher é rotulada, quase sempre, de maneira negativa. Se a mulher veste um vestido, “está a pedi-las!”, se a mulher usa batom vermelho, “está a pedi-las”. Se a mulher diz não, “está a pedi-las”. Esta objetificação anula psicologicamente e emocionalmente a mulher. E esse é um dos maiores motivos para que as vítimas se calem.
Para além de não serem levadas a sérios, ainda são culpabilizadas. Este também foi um dos maiores argumentos usados para justificar o que me aconteceu. Ia de vestido com decote por isso “estava a pedi-las”.
Com toda a pressão e insultos que sofri, acho que não fiquei com nenhum dano psicológico. Naquela semana posso dizer que não estava 100% bem psicologicamente. Não por sentir que houvesse algo de errado em lutar por aquilo em que acredito, mas por saber que a minha família também estava a ser afetada.
Comecei a ter ansiedade, não conseguia abrir o Facebook, não conseguia dormir. Deixei de ler os comentários e dediquei-me a ler as mais de quatro mil mensagens que tinha.
Demorei cerca de um mês a conseguir ler tudo. Mas li. 80% eram mensagem de apoio. Mensagem de mulheres que passavam pelo mesmo. Mensagens de homens que sentiam repulsa por aquilo que se estava a passar.
Ao ler todas aquelas mensagens era como se estivesse a alimentar-me só de coisas boas. Não estava sozinha! Éramos uma família bem grande.
No mesmo mês vi imensas raparigas a falarem, famílias a discutirem o assunto. Parte da solução do assédio e do sexismo passa pelas conversas, e principalmente pelos valores que transmitimos, já que a nível legal muito pouco se faz. Há leis, mas não se cumprem.
Isto poderia ter-me saído caro, se não tivesse uma estrutura psicologicamente forte, nem tivesse conseguido superar os picos de ansiedade em poucas semanas.
As redes sociais trouxeram-nos um grande problema. Quando não existem argumentos, quando as pessoas são malformadas, partem para o insulto. Liberdade de expressão não deve ser nunca confundida com ofensas. Pergunto-me o que leva alguém a insultar outra pessoa. O que ganha? Esta necessidade é muitas vezes o expressar as próprias frustrações.
Nós damos o que temos para dar. Se temos amor, damos amor. Mas se temos ódio, damos ódio. Uma das minhas histórias favoritas, e que sigo à risca, é esta: O avô diz ao neto: “Está a acontecer uma luta dentro de mim. É uma luta terrível entre dois lobos. Um lobo é mau. Ele é a raiva, a inveja, o arrependimento, a arrogância, o ressentimento, a inferioridade, a superioridade e o ego. O outro lobo é bom. Ele é a alegria, a paz, o amor, a esperança, a serenidade, a humildade, a gentileza, a benevolência, a empatia, a generosidade, a verdade, a compaixão e a fé”. O neto ficou a pensar no que o avô disse por uns instantes e depois perguntou: “E qual dos lobos é que vence?” À qual o avô respondeu: “Aquele que alimentares mais.”
E foi com base nesta história que superei, com grande rapidez e força, tudo o que de negativo aconteceu. Alimentando sempre o meu lobo bom e respeitando quem alimenta o lobo mau.
Como podemos combater o machismo, o sexismo e o assédio? Denunciar! Falar! Educar. Ser cidadãos mais responsáveis, ser pais mais responsáveis.
Não ter medo de partilhar experiências, de falar, de dar opinião. Não compactuar com estes atos. Ter consciência de que as mamocas não se constipam e oprimir uma mulher não são coisas de homens.