Um ano de Covid-19: O que mudou e o que nos espera no futuro?
O medo e a incerteza sobre este vírus já foram atenuados, mas os próximos tempos ainda parecem incertos. Falámos com uma socióloga que nos ajudou a compreender como serão as relações humanas e a “normalização” futura.
Há precisamente um ano, a redação da Saber Viver estava a arrumar os computadores para se instalar por tempo indeterminado em casa. Despedimo-nos umas das outras não com saudosismo, nem com tristeza, até porque penso que todas estaríamos convencidas que passados uns meses já estaríamos de novo no nosso open space a conversar, a partilhar o dia a dia e a sair para almoçar.
Passou um ano e ainda não sabemos quando voltaremos ao escritório. Ainda que já estejamos habituadas às impessoais reuniões de Zoom e às chamadas telefónicas para explicar a ideia de um artigo, não é a mesma coisa. E nunca será.
O contacto humano está em causa? O que é que mudou e o que é que irá mudar? O mundo está em transformação e, por isso, tentámos perceber quais serão as mutações que as interações humanas sofrerão. Estamos nós mesmas em causa?
O olhar do passado para o futuro
Estamos a viver algo histórico que, certamente, virá nos futuros manuais escolares, ao lado de outros grandiosos e assustadores acontecimentos. A pandemia causada pelo coronavírus está a marcar as diferentes gerações e já é, muitas vezes, é comparada a um período de guerra, até porque, a nível de interações interpessoais, já se notam algumas parecenças entre ambos os períodos.
“É curioso que na recolha de testemunhos que fiz no primeiro confinamento e que foi agora publicado, foi feita, mais do que uma vez, a comparação com a guerra colonial, ao nível das preocupações com os outros, particularmente com amigos e família. E quando digo que vai marcar estas gerações, marcá-las-á muito do ponto de vista comportamental, quer no modo como interagimos com os outros, quer no modo como ‘olhamos’ a vida e o mundo”, diz-nos Maria José Núncio, Socióloga.
A facilidade de transmissão deste vírus veio mudar a forma como nos relacionamos e o distanciamento social assumiu-se como expressão prioritária do nosso dia a dia, até numa simples ida ao supermercado. Os atos humanos mudaram e individualismo pode ter os dias contados.
“Haverá, seguramente, um reequacionar de prioridades e valores, não apenas pelas mudanças económicas e sociais geradas pela pandemia, e cujos efeitos se prolongarão no tempo, como pelas mudanças individuais suscitadas pelo tempo de confinamento que, quer queiramos quer não, foi, também, um tempo de reencontro (ou até de encontro) connosco próprios”, refere a especialista.
“Acredito que as maiores diferenças passem pela revalorização de alguma simplicidade do quotidiano – o ar livre, o toque dos outros, a liberdade de passear e viajar, o gosto de nos sentirmos perto – em detrimento do consumo e do individualismo que, de alguma forma, nos dominava no dia a dia”, acrescenta.
Deixarmos de olhar para o nosso umbigo é, talvez, uma das consequências benéficas que o coronavírus nos colocou à frente. Neste aspeto, o futuro poderá ser mais empático do que o presente.
“Acho que vamos dar mais valor à simplicidade e aos pequenos prazeres do quotidiano, às dimensões espirituais (não necessariamente religiosas, mas de encontro connosco próprios) e, sobretudo, às relações com os outros e aos afetos. Mais do que nunca, vamos ganhar consciência que cada um de nós, enquanto indivíduo, fazemos sentido porque existe o outro. Parafraseando John Donne, ‘a consciência de que nenhum de nós é uma ilha isolada!’”, partilha Maria José Núncio.
O que esperar das relações humanas
Os abraços, os beijos e os apertos de mão há muito que estão em stand-by, mas nem por isso nos esquecemos deles. A mesma coisa acontece com os encontros familiares, os jantares com os amigos e as saídas à noite. Quando falamos da suposta normalidade, teremos nós abertura para nos voltarmos a encontrar com os nossos sem sentir medo?
“Naturalmente que as generalizações são perigosas, e para alguns, sobretudo no imediato, haverá alguma resistência à interação, mas acredito que será predominante o número dos que estão sedentos de contacto e de convívio, porque é essa a nossa essência humana. Precisamos desse contacto e esta situação veio torná-lo muito evidente!”, assegura a socióloga.
Porém, é talvez nas relações amorosas que estará a maior diferença entre a era pré e pós-Covid. “Acredito que os maiores impactos se darão ao nível das relações pré-existentes, em que, como resultado do tal reequacionar de valores e expectativas que referi à pouco, poderá haver o fortalecimento dessas relações ou, pelo contrário, à rutura das mesmas. E isto sucede quer nas relações em que existe coabitação (como os casamentos), como naquelas em que não existe essa coabitação (como nos namoros)”, começa por explicar Maria José Núncio.
Os casais que já viviam juntos tiveram oportunidade de reavaliar a sua relação e certamente foram postos à prova. “As tensões e exigências de reorganização da vida doméstica, as preocupações com a família alargada e com o futuro, muitas vezes económico, pode fazer com que relações que já estavam algo deterioradas, mas em que isso ainda não tinha sido assumido (às vezes pelo comodismo e habituação da rotina), agora se rompam de vez, quando as pessoas se apercebem de como as rotinas podem ser frágeis.”
No caso das relações de namoro, há também uma reavaliação “baseada na vontade individual de ser feliz e ‘aproveitar’ o melhor possível todos os momentos e oportunidades da vida.”
A tecnologia ajudou ou complicou?
Se já erámos seres digitais antes, sem dúvida que a pandemia veio aproximar ainda mais esta relação humano-tecnológica. Os contactos laborais e as relações com familiares e amigos fazem-se agora em pequenos quadrados no telemóvel, com a distância humana cada vez mais vincada. Poderá isto ser reversível?
“Julgo que talvez não seja reversível, mas também não me parece que o fosse antes desta situação pandémica, uma vez que as nossas vidas já estavam muito ‘dominadas’ pelas tecnologias. De alguma forma, já nos tínhamos convertido, em larga medida, em seres digitais (e adictos ao digital). Curiosamente, nos testemunhos recolhidos durante o confinamento, constatei uma espécie de ‘reabilitação’ da tecnologia, nomeadamente, das redes socias, como forma de reduzir o isolamento e poder manter o contacto com amigos e familiares”, menciona Maria José Núncio.
Embora já estivéssemos agarrados ao telemóvel durante todo o dia, foram os jovens e adolescentes que consolidaram ainda mais a sua relação com os gadgets. Mas isto não foi necessariamente negativo.
“Cada vez mais, os ecrãs e os teclados parecem substituir o contacto cara a cara, mas isso já sucedia antes e o próprio conceito de conversa e encontro terá de ser reformulado. Ainda assim, importa sublinhar que esta facilidade e à vontade nos contactos virtuais acabou por funcionar como protetora nesta fase, mitigando, um pouco, a perceção de isolamento nas gerações mais novas, afastadas das escolas e das diferentes oportunidades de convívio”.
Já em relação às gerações mais idosas, o contacto humano poderá não estar para breve. Em muitos casos, há idosos que estão em casa já há um ano, sem qualquer contacto físico com a família e sem acesso às plataformas digitais. O isolamento é primordial, mas ao mesmo tempo urge a vontade de passar mais tempo com quem já tem mais idade.
“Essa parece-me ser uma das questões mais difíceis”, começa por explicar a socióloga. “Por um lado, queremos retomar os contactos e reconhecemos como, nas idades mais avançadas, cada minuto é precioso e que o isolamento está a contribuir para a degradação das suas vidas. Mas, por outro lado, há a consciência do perigo e isso suscita receios.”
A vacinação desempenha um papel fundamental nesta questão. “A vacinação vai ser determinante a esse nível e irá permitir a retoma dos contactos familiares, particularmente, dos contactos intergeracionais, por exemplo, entre avós e netos. Contactos que são tão fundamentais para a perceção de utilidade e de propósito de vida para os mais velhos e para a estruturação identitária das gerações mais novas.”
Passou um ano desde que confiámos pela primeira vez. Dissemos adeus aos nossos locais de trabalho, suprimimos as visitas aos nossos avós, os jantares entre amigos tornaram-se quase inexistentes e a vida social, no geral, ainda está à espera de ser resgatada.
O que nos espera ainda é incerto, mas sabemos que as relações humanas serão sempre necessárias à nossa existência.