“A mulher vítima de qualquer abuso tem dificuldade em olhar para o futuro”
O tempo passa e o sexo feminino continua a ser alvo de muitos abusos. A propósito do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, falámos com a fundadora da Free Free, a associação que promove a liberdade emocional, física e financeira das mulheres.
Só nos primeiros seis meses de 2022, foram assassinadas 19 mulheres e meninas em Portugal, de acordo com os dados do Observatório das Mulheres Assassinadas da União de Mulheres Alternativa e Resposta. Quinze dessas mortes foram em contexto de relações de intimidade e 16 foram femicídios, ou seja, assassínios de mulheres com base na violência de género. Já no que diz respeito a tentativas de homicídio, foram 28.
A morte de Mahsa Amini, a 16 de setembro, virou as atenções do mundo para o Irão. A jovem de 22 anos morreu depois de ter sido presa pela polícia da moralidade por alegadamente usar o hijab (véu islâmico) de forma imprópria.
Desde aí, os protestos saíram à rua por todo o país. Segundo a organização não-governamental Iran Human Rights, que tem sede na Noruega, e é formada por iranianos que vivem no exílio e outros que vivem no Irão, esses protestos já zeram, pelo menos, 185 mortos, entre os quais muitas mulheres, que têm tirado o hijab.
Na Ucrânia, o número exato de mulheres violadas (incluindo menores) desde o início da invasão russa é desconhecido. Há alguns relatos, mas muitos mais estarão por fazer dado o estigma de uma violação.
Há cinco meses, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América ditou o fim do aborto. Cada estado é agora livre de decidir o que fazer em relação a este tema, desde a proibição total à permissão com mais ou menos restrições.
Treze dos estados já suspenderam o direito ao aborto. No Ohio, depois de dois casos terem sido notícia – uma criança de 10 anos, que foi violada por um homem de 27 anos, teve de ir ao Indiana fazer um aborto, e uma mulher foi ao Michigan para poder abortar às 20 semanas de gravidez, depois de os médicos lhe terem dito que o seu feto tinha várias malformações irreversíveis –, suspenderam a lei proibitiva por tempo indeterminado.
Já a Hungria aprovou uma lei que obriga a mulher que quer abortar a ouvir o batimento cardíaco do feto. Tanto num caso como no outro, a violência física e psicológica tem um forte impacto na liberdade de escolha das mulheres.
O mundo continua a não ser um lugar seguro para o sexo feminino e há muito para fazer no combate à violência contra as mulheres
Lugar inseguro
O rol de exemplos podia continuar e mostra porque é que ainda se tem de assinalar o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres (25 de novembro). O mundo continua a não ser um lugar seguro para o sexo feminino e há muito para fazer no combate à violência contra as mulheres.
Yasmine McDougall Sterea escolheu fazer desta a sua luta, fundando a Free Free, em 2018, no Brasil. A associação chega a agora a Portugal e já tem planos para se expandir para Espanha, Inglaterra e Líbano e, mais tarde, para países africanos.
A missão da Free Free é, desde o início, promover “a liberdade emocional, física e financeira das mulheres de todas as idades” e nasceu da história pessoal da fundadora. Uma vida de abusos fez com que a mãe se suicidasse, tinha Yasmine McDougall Sterea apenas 21 anos.
“Quando engravidei da minha filha, aos 28 anos, senti muita falta da minha mãe e muita dor. Na altura, já tinha uma posição de liderança na Vogue e queria usar o espaço e o conhecimento que tinha de forma a contribuir para que meninas e mulheres não passassem por abusos diversos, questões emocionais, desigualdade de género e não interiorizassem o mito da mulher perfeita, que não existe”, conta.
Nestes quatro anos de vida, a Free Free já impactou positivamente mais de 16 mil raparigas e mulheres com a ajuda de uma rede de 70 parceiros. O primeiro foi Ministério Público do Brasil, mas seguiram-se muitos outros, entre os quais, a Gucci, a United Airlines, a Unilever, a Pepsico, a Johnson & Johnson e a Santa Casa da Misericórdia do Porto.
A ação da Free Free tem uma metodologia única de programas educativos, que passam, como explica a fundadora, “por técnicas de psicodrama, teorias de Jung e programação neurolinguística, mas também pela moda e o acolhimento. É extremamente catártico, o que é importante, já que uma mulher vítima de qualquer abuso tem dificuldade em olhar para o futuro. O que queremos é que a mulher consiga sair do lugar de vítima e comece a ‘andar’ de novo”.
Não é normal
O que a trouxe a Portugal? “Quanto mais lugares e pessoas de diferentes nacionalidades conheço, mais percebo que o abuso é uma linguagem que toda a gente entende, independentemente da classe social e da proveniência. Quando olhamos para os índices de igualdade de género, Portugal está bem classificado, mas, quando observamos a cultura do dia a dia, há muitas questões que ficam debaixo do tapete”, responde Yasmine McDougall Sterea, que conhece vários casos de violência, de mulheres que não conseguem arrendar casa sozinhas ou que são excluídas por serem divorciadas ou por uma questão racial.
A fundadora da Free Free não tem dúvidas de que cá, como noutros países, “há uma espécie de normalização da violência, que é perpetuada também por videojogos, pela música e por filmes”.
Esse é um motivo pelo qual “muitas mulheres e homens não percebem o que é abuso e o que não é. Se tiverem consciência dos pequenos sinais não terão de chegar ao extremo de serem agredidas ou violadas”.
Crise vs. liberdade
Como é que isto ainda acontece em pleno século XXI? “Os direitos das mulheres e a igualdade de género evoluíram muito nos últimos 100 anos, mas há ainda um grande desequilíbrio”, começa por explicar Yasmine McDougall Sterea.
“Em tempos de crise como a que vivemos hoje, corre-se o risco de voltar atrás. Se olharmos para o Irão, Estados Unidos e tantos outros países, percebemos que a liberdade é vista como um inimigo. Mas nós somos metade da população mundial, por isso, como podemos ter uma sociedade próspera, segura, em crescimento e com níveis de educação se as mulheres tiverem menos direitos?”, questiona.
“Estudos mostram que há uma correlação entre os países que têm mais direitos e liberdades e os que são mais prósperos, seguros e estáveis politicamente. Portanto, não é só uma questão de justiça social mas também de segurança pública, de prosperidade e estabilidade política”, realça A fundadora da Free Free, que convida todas as mulheres a fazerem ouvir a sua voz.”
Programas educacionais
Em Portugal há seis meses, a Free Free já fez uma parceria com a Santa Casa da Misericórdia do Porto e está a em contacto com outras associações para promover o seu projeto educacional.
“No Porto, fizemos um workshop tanto com as pessoas que trabalham na Santa Casa da Misericórdia como com mulheres em situação de violência”, conta Yasmine McDougall Sterea, a fundadora.
Além das parcerias com as instituições portuguesas, a Free Free vai também organizar programas aos quais todas as mulheres terão acesso.