É impossível ficar indiferente ao tema quando se assiste ao filme (ou se lê o livro) A Rapariga Dinamarquesa. Ainda que romanceada, a história de vida daquela que foi a primeira transexual a realizar uma mudança de sexo cirúrgica é um despertar emocionante para os dramas internos vividos por quem nasce no corpo errado.
Einar Wegener nasceu rapaz, na Dinamarca, em 1882, tornando-se um pintor de renome. Casado com Gerda Wegener, também pintora, só despertou para o seu desconforto interior, quando, por sugestão de uma amiga da mulher, vestiu roupas femininas e posou para a esposa em substituição de uma modelo que faltara. Gostou de estar na pele de uma mulher e afirma, no seu diário, que se sentiu “em casa desde o primeiro momento”.
Durante anos, vestiu-se e apresentou-se publicamente como mulher, adotando o nome de Lili Elbe, dizendo ser prima de Einar. Deixou de pintar, porque, segundo ela, esse talento ficara na sua vida passada.
Apoiado por Gerda – o casamento foi, mais tarde, anulado –, decidiu procurar ajuda médica e avançar com as cirurgias para mudar de sexo, em Dresden, na Alemanha, técnicas que na altura eram ainda praticamente desconhecidas.
Acabou por falecer, em 1931, vítima de complicações na sua quinta cirurgia, uma pioneira tentativa de transplantar um útero. Porém, acreditava que valia a pena passar por todas as dificuldades que enfrentou.
Lili estava então muito à frente do seu tempo, numa época em que nem a palavra transexual tinha sido sequer inventada. Felizmente, evoluíram os tempos, as mentalidades e as vontades.
Portugal foi um dos primeiros países do mundo a avançar com legislação para agilizar a mudança de género, em 2011. Mas ainda muito está para fazer para proteger os direitos de quem não se identifica com o corpo em que nasceu.
Afinal, o que implica ser transexual (ou trans)?
Para muitas pessoas em todo o mundo, a sua identidade de género – ou seja, a sua identificação psicológica com o facto de ser homem ou mulher – não corresponde ao sexo que lhe foi atribuído aquando do seu nascimento.
Geralmente começam a sentir os primeiros sinais ainda em criança, sinais estes que vão sendo cimentados com
a maturidade e reforçados na adolescência. São pessoas conhecidas como transexuais. Mas conforme nos explica Daniela Bento, membro da direção da Associação ILGA Portugal e coordenadora do GRIT (Grupo de Reflexão e Intervenção Trans) da mesma associação, “hoje é mais inclusivo falar em pessoas trans e não transexuais, pelo facto de esta designação ter uma conotação com a mudança sexual mais física, identificada com a medicina”.
Sandra Saleiro, socióloga e investigadora do Centro de Investigação de Estudos de Sociologia do ISCTE do Instituto Universitário de Lisboa, explica que, até à morte da transexual brasileira Gisberta Junior, em 2006, no Porto, pouco se falava desta questão em Portugal.
Esta especialista, que, há alguns anos, desde a sua tese de doutoramento, estuda as questões da identidade de género, refere que este fenómeno era sobretudo abordado pelo lado da medicina, como uma patologia até que começaram a surgir outras explicações que não de natureza médica.
“Hoje vemos a transexualidade como uma entre outras possibilidades de as pessoas se expressarem dentro da diversidade de género, ou seja, foram surgindo outras explicações e outras perspetivas para encarar este fenómeno”, refere.
Quando surgiu, em Portugal, a Lei de Identidade de Género, em março de 2011, esta legislação era das mais avançadas no mundo. Entretanto, outros países foram introduzindo leis semelhantes e até mais inovadoras, ficando a nossa mais atrasada em alguns pontos, aspetos estes que motivam agora as alterações em discussão.
A lei de 2011 introduziu um carácter administrativo ao processo de reconhecimento legal de identidade de género. Se, anteriormente, só era possível fazê-lo através de um processo judicial, a partir desta data passou a ser permitido aos maiores de 18 anos fazerem a alteração no cartório do registo civil, mediante relatório médico que comprove diagnóstico de perturbação de identidade de género.
As alterações já aprovadas pela Assembleia da República preveem que a mudança de género possa acontecer aos 16 anos e sem a inclusão de um relatório médico. Ainda que aprovada pelos deputados, Marcelo Rebelo de Sousa vetou a alteração, pedindo mais esclarecimento relativos à questão da dispensa de relatório no caso de menores de 18 anos.
Em julho deste ano, o Parlamento aprovou a alteração à lei em resposta ao veto presidencial, estabelecendo a obrigatoriedade de um relatório médico que ateste a vontade dos menores.
FINALMENTE PROMULGADA! 😀🏳️🌈
O Presidente da República promulgou o Decreto da Assembleia da República relativo ao direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa.https://t.co/oBvEE4Gmj9 pic.twitter.com/YwUQbFQ5zh— ILGA Portugal (@ilgaportugal) July 31, 2018
Ser trans não é doença mental
Para Daniela Bento, é fundamental que as alterações à lei avancem, uma vez que a disforia de género (desconforto com o género atribuído à nascença) não é considerada doença mental desde 2013, altura em que a Associação Americana de Psiquiatria reviu o seu Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais.
Portanto, não faz sentido exigir-se um relatório clínico numa decisão que é pessoal e não médica. Explica até que há médicos que obrigam a fazer tratamentos, quando os próprios não o desejam.
Das cerca de 700 pessoas que solicitaram a mudança de género desde 2011, apenas uma parte avançou para cirurgias, já que esta é uma decisão pessoal. Outra questão é a morosidade das intervenções cirúrgicas no sistema público, que, neste momento não consegue dar resposta aos pedidos. E, obviamente, nem todos podem suportar os custos no sistema privado.
De acordo com Daniela Bento, “as pessoas trans sentem um elevado grau de sofrimento e quanto mais cedo conseguirem resolver a sua identidade de género legal, mais fácil se tornará. Até porque aos 16 anos muitos jovens já estão a viver a vida com outra identidade e, neste momento, o Estado não os protege”, afirma.
A coordenadora do GRIT alerta ainda que a taxa de suicídio ou, pelo menos, de tentativas de suicídio neste grupo é muito elevada e, quanto mais cedo se resolverem os problemas legais, mais cedo “terão uma vida tranquila”.
Também Zélia Figueiredo, médica psiquiatra no serviço de Sexologia do Hospital Magalhães Lemos, no Porto, envolvida de perto nos processos de transição, apoia as novas alterações à lei. Mas compreende que a questão da necessidade de relatório médico, a parte que levantou dúvidas ao Presidente da República, seja ainda uma questão difícil de contornar. “É possível que a nova lei seja aprovada, mas, incluindo a necessidade de relatório médico”, afirma, reforçando que os jovens, aos 16 anos, sabem perfeitamente como se sentem.
Ser ou não uma questão médica pode levantar, de facto, algumas dúvidas, pois se não for “considerada uma questão de saúde”, como podem depois estes jovens ser encaminhados para o processo de transição nos hospitais?
Zélia Figueiredo explica que este processo implica alguns passos: primeiro, a consulta de psiquiatria e sexologia identifica a situação de disforia de género e envia o utente para a especialidade de endocrinologia, onde se começa, geralmente, o processo hormonal.
Daqui, para quem quer continuar a sua transição, passa-se à cirurgia e, depois, é o parecer conjunto das três especialidades que segue com um pedido na Ordem dos Médicos para cirurgia de mudança de sexo.
“Já observei mais de 280 casos e quase todos eles querem avançar para a transição completa, mas alguns ficam pelo caminho por medo das cirurgias. Outros apenas porque não se identificam neste sistema binário homem/mulher) e preferem manter o corpo como está”, explica.
Mudança de sexo na primeira pessoa
Quando Lourenço Ódin Cunha, aos 21 anos, – na altura ainda com o nome de Ivone, atribuído à nascença em função dos seus caracteres sexuais femininos – decidiu procurar ajuda para encontrar o seu caminho na vida, rumou ao Luxemburgo à procura de soluções.
“Procurei ajuda neste país e também na Bélgica, na Suíça, mas naquela altura pouco se falava no tema da transexualidade. Comecei a fazer tratamento hormonal no Luxemburgo, mas mal sabia eu que, afinal, seria em Portugal que iria encontrar o apoio de que necessitava”, explica.
Em 2007, viu na televisão uma reportagem com um médico do Porto e decidiu iniciar uma pesquisa que o levou até este clínico, que, entretanto, lhe explicou que estava a fazer um tratamento hormonal errado.
Regressou a Portugal, onde tinha a sua família, e foi acompanhado por uma equipa de três médicos de hospitais do Norte, que o prepararam para a fase seguinte. Entretanto, assim que foi possível, Ivone mudou de nome para Lourenço e, em 2013, iniciou a primeira de muitas cirurgias destinadas à transição de sexo.
“Entre janeiro e junho de 2013, fiz 14 cirurgias. Foram cerca de 18 intervenções ao todo”, refere o personal trainer que ficou conhecido dos portugueses ao participar num reality show, no qual revelou ao país o seu segredo. Entretanto, decidiu também escrever o seu testemunho no livro Dar Corpo à Alma (A Minha Vida Dava um Livro).
“As minhas operações foram realizadas no privado, custaram 50 mil euros, mas felizmente recolhi todo o apoio possível junto dos meus pais. Isto foi fundamental, pois foi um processo muito desgastante: eu, que sou bem constituído — tenho cerca de 80 quilos — cheguei a ter 65 na fase das cirurgias”, revela.
Pensou em desistir, porque estava muito debilitado, mas a mãe foi o seu grande incentivo e não deixou que se fosse abaixo. Hoje confessa-se muito feliz e está até entusiasmado com a organização do seu casamento, que acontecerá em setembro deste ano. Uma nova vida que só conseguiu por ter sido possível mudar de sexo.
As modelos transexuais mais famosas do mundo
A modelo brasileira Roberta Close foi a primeira mulher transexual do mundo a posar nua para a revista Playboy, em 1989, já depois de submetida a intervenções cirurgias de transição. Foi também eleita uma das mulheres mais bonitas do Brasil.
Foi pioneira, mas não foi a única modelo transexual a ter fama além-fronteiras no mundo da moda: Lea T, igualmente brasileira, nasceu Leandro e também dá cartas no mundo da moda internacional. A modelo australiana Andrej Pejic é famosa pela sua androgenia, e Claudia Charriez é trans e esteve presente em diversas campanhas publicitárias.
Também Carmen Carrera, norte-americana, nasceu com o corpo masculino e fez carreira como mulher depois de ter participado no reality show RuPaul’s Drag Race.
O que diz a Lei da Identidade de Género*
A nova lei, com alterações aprovadas pelo Parlamento em julho passado, pretende estabelecer o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa. E esclarece os vários termos usados na legislação:
Sexo: conjunto de características biológicas e fisiológicas que distinguem os homens e as mulheres.
Género: os atributos sociais, papéis, atividades, responsabilidades, poderes e necessidades decorrentes do entendimento social sobre masculinidade e feminilidade, que determinam a forma como as pessoas são
percecionadas e como se espera que pensem e ajam.
Identidade de género: a vivência interna e individual de cada pessoa relativamente ao seu género,independentemente do sexo atribuído à nascença.
Expressão de género: o modo como cada pessoa expressa e comunica o seu género e/ou a forma como é percecionada pelas outras pessoas.
Características sexuais: conjunto de atributos de natureza anatómica de uma pessoa, compreendendo as características sexuais primárias, como os órgãos genitais internos e externos, e as características sexuais secundárias, que incluem, mas não se limitam, a massa muscular, distribuição capilar, peito e estatura.
*Fonte: Presidência do Conselho de Ministros – Proposta de Lei N.º 75/XIII
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