Os clichés estão todos lá. Na série Dietland, a protagonista é uma mulher obesa com problemas de autoestima, a sua oponente é uma diretora de revistas femininas magérrima, oportunista e má e os homens são todos uns camelos (para não dizer outra coisa) – só os gays é que não…
Só que a mulher que escreveu a série pegou nessa base comum da cultura popular para escrever uma série radicalmente inovadora, séria e divertida. Sim, tudo ao mesmo tempo.
Dietland é a série que o canal norte-americano AMC estreou em junho, dirigida pela guionista Marti Noxon, baseada num romance de 2015 de Sarai Walker e que ainda não chegou a Portugal (mas devia).
Nós já vimos a primeira temporada e explicamos aqui porque é que precisamos todas (gordas, magras e assim-assim) de ver esta história. Afinal, ela dá-nos lições bem úteis para sobrevivermos neste mundo de cão.
7 razões para incluir Dietland na sua lista de séries obrigatórias
1. O peso pesa mesmo cá dentro
Plum em inglês quer dizer “ameixa” e esse é o nome pelo qual Alicia Kettle (Joy Nash), a protagonista, é conhecida. Isto é, não é bem conhecida uma vez que ela escreve, sem assinar, as respostas que a diretora da revista Daisy Chain dá às cartas das leitoras que lhe chegam por email.
Ela é o que se chama de escritora fantasma. Plum tem um amigo, um negro gay dono de uma pastelaria, com quem chega a ter uma discussão sobre, afinal, quem é que sofre mais com as discriminações da sociedade. Plum tem uma mãe com quem fala ao telefone. E as relações de Plum são apenas estas.
Ela atribui ao peso e ao preconceito dos outros a dificuldade para fazer amigos ou ter namorados – só teve um e nunca teve relações sexuais. Mas ela própria tem preconceitos em relação ao seu próprio corpo: quer fazer uma cirurgia radical para emagrecer, vai pagá-la a crédito e frequenta um grupo de ajuda para obesos que, dizemos nós que assistimos de fora, serve sobretudo para reforçar o estigma que cada um dos membros tem sobre a gordura.
Quando um homem parece interessado nela, Plum decide imediatamente que o que ele quer é festa ou dar uma volta, mas não quer um relacionamento sério. Casamento é, na cabeça de Plum, um estado reservado às magras.
Ao longo dos 10 episódios da série vemos Plum a sofrer profundamente com as injustiças do mundo sobre as mulheres obesas, mas também vemos a personagem a transformar-se, a sair da sua condição de vítima da sociedade ou de fantasma para ter a sua vida nas mãos, escrever em nome próprio e acreditar que pode ser amada.
No último episódio Plum – que, entretanto, desistiu de ser magra – corre para o um carro em fuga, sinal que decidiu deixar de se limitar por causa do peso que tem.
2. Uma mulher para ter poder tem de ter os homens bem presos
A série Dietland desenrola-se num ambiente empresarial de um grupo de comunicação social americano. Kitty Montgomery, interpretada pela atriz Julliana Margulies, que emagreceu imenso para desempenhar este papel, encarna a diretora de revista feminina mais arquetípica que já se viu.
Ela começa por se mostrar fútil, apenas preocupada com a aparência física, a correr para o closet da secção de beleza sempre que tem um problema e a conseguir falar horas de seguida sobre as propriedades de um creme.
Kitty é má e não perde uma oportunidade para rebaixar os subalternos, seja o assistente Eladio, seja a escritora fantasma Plum. Kitty é também a única mulher do grupo empresarial a ter assento no conselho de administração.
E como é que ela conseguiu esse assento? Ao longo dos 10 episódios vai-se tornando claro que, a par da revolução que diz ter feito nos títulos femininos do grupo, de que a revista Daisy Chain é o corolário, Kitty tem e mantém o poder porque conhece bem o CEO do grupo. Bem demais? A personagem deixa várias vezes muito claro que teve um relacionamento com o diretor-geral e manteve relações sexuais com muitos outros de forma a assegurar o seu poder.
These boots were made for 💋. #Dietland pic.twitter.com/k56QU0SKGc
— Dietland (@DietlandAMC) August 4, 2018
Mais do que estes favores, para chegar ao poder absoluto Kitty mantém uma rede de informadores dentro e fora da empresa que lhe vão contando os pecadilhos dos homens no poder. É assim que consegue ver aprovada a publicação do Manifesto Jennifer na revista. É assim que a sua moção para chegar a CEO do grupo é aprovada. Kitty chantageia os homens que tiveram relações sexuais ilícitas (com subalternas ou fora dos casamentos).
3. O establishment só muda se os poderosos sentirem medo
O contexto é tudo. Kitty Montgomery só consegue chegar ao cargo máximo da empresa porque Jennifer anda a atirar abusadores sexuais de pontes e arranha-céus abaixo.
Nos primeiros episódios vemos um grupo paramilitar a assassinar homens que sabemos, muito mais tarde, terem sido violadores de uma rapariga de 13 anos. Jennifer é o nome desse grupo composto por mulheres, sobretudo, ex-militares que sofreram violações enquanto estavam no exército ou na marinha.
Pouco depois das primeiras execuções, o grupo publica o manifesto em que apresenta as razões de ser da sua luta: fartas do primado do patriarcado e das teorias feministas-pacifistas, estas mulheres querem mudar o mundo pela ação, pela força. A ideia não é aniquilar todos os homens, a ideia é eliminar aqueles que usam a força física ou a sua posição de poder sobre as mulheres.
Rapidamente aparecem réplicas de “lobas solitárias”, sem qualquer ligação ao grupo, mas que fazem grandes estragos.
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— Dietland (@DietlandAMC) August 3, 2018
Quase no final da primeira série, Jennifer sofre uma denúncia, as suas patrocinadoras são presas, uma operacional é morta pela polícia e a célula é desmembrada. Nesse momento, Kitty Montgomery apercebe-se que se a ameaça Jennifer desaparecer, o seu poder como CEO fica fragilizado.
O fim do Jennifer significa o derreter das espadas que pendem sobre as cabeças dos seus inimigos: as acusações de assédio e violência sexuais deixam de ter capacidade de tirar os homens do poder. Tudo aponta para que Kitty seja a próxima patrocinadora do movimento terrorista feminista e, claro, não por solidariedade mas por interesse próprio.
4. As feministas ricas nunca terão os mesmos objetivos do que “as do povo”
Há uma reunião histórica no seio do grupo Jennifer a que Plum, entretanto entrada na clandestinidade, assiste. Nela se discute o problema do financiamento do grupo porque as três mecenas fundadoras desistem da ideia de o apoiar.
Uma das paramilitares afirma: “não quero saber do que essa branca rica quer”. As mulheres aderiram ao Jennifer para mudar o mundo, não querem dinheiro para parar com a luta. Júlia, por acaso, não é branca, mas a verdade é que ela é rica. Foi com patrocínio de Júlia e das suas irmãs que o grupo se consolidou, mas quando as duas mais novas vêem o cerco policial a aproximar-se, acabam por desistir e quererem as suas vidas normais – confortáveis, com filhos e marido – de volta.
Na mesma altura vemos outra mulher, Verena Baptist, nos escritórios do FBI, a pedir anonimato, a definir-se como feminista e a dizer que tem nomes para oferecer à investigação. Quem é Verena Baptist? Uma mulher rica, autoproclamada feminista-pacifista, que tem um centro de recuperação de mulheres que sofreram algum tipo de violência.
Verena's revenge? #Dietland pic.twitter.com/gBO52t6NS3
— Dietland (@DietlandAMC) July 31, 2018
Ela encarna o bem e a serenidade em pessoa, mas apenas enquanto a sua metodologia não é posta em causa. Plum passou alguns dias no centro de Verena – a Caliope House – e por algum tempo seguiu à risca as recomendações da guru, mesmo que elas a expusessem também à violência do mundo – Verena arranja-lhe encontros com homens que acabam sempre por a tratar mal.
Quando Plum sai fora do esquema preconcebido, Verena expulsa-a de sua casa. O que sabe Verena do grupo Jennifer? Verena Baptist conhece Julia e sabe do seu envolvimento com Jennifer. E é de acreditar que também saiba a identidade de várias operacionais do grupo terrorista – afinal, ela recebia mulheres violadas em casa para as recuperar.
O que ganha ela com a ida ao FBI? A manutenção do status quo patriarcal que a favorece: enquanto o mundo for violento para as mulheres, Verena terá sempre trabalho para fazer, um nível de importância superior e um grupo próximo de pessoas que a idolatram. Se os homens deixarem de violentar mulheres (ainda que apenas motivados pelo medo), o que será da instituição de caridade fundada por Verena Baptist? Deixa de fazer sentido e desaparece.
5. Os homens não sabem como fazer sexo
Fica claro logo no início de Dietland que os homens poderosos fazem sexo como forma de subjugar as mulheres. E, em alguns casos, como uma espécie de prova de obstáculos através da qual algumas mulheres podem superar a sua circunstância de inferioridade social.
E os homens que não têm poder? Num dos encontros quer Verena Baptist arranja a Plum, a protagonista da série conhece Jack. Esse primeiro encontro não corre bem, mas dias depois Jack começa a telefonar e mandar mensagens a Plum e acabam por encontrar-se novamente. O encontro está a correr tão bem que Plum aceita o convite de ir a casa de Jack.
Pausa. No mesmo episódio em que Plum se digladia interiormente com a sua autoimagem, os preconceitos e as dores físicas de uma agressão, a personagem descobre um quarto sórdido na Caliope House onde, por estes dias, está a dormir.
A divisão ao fundo do corredor tem pornografia projetada nas quatro paredes, no chão e no tecto – são os filmes mais vistos no PornHub em tempo real. Nos vídeos que nós, enquanto espetadoras, não vemos completamente, sabemos que estão mulheres a serem estranguladas pelos mesmos homens que as estão a “comer”, a serem penetradas por trás, a praticarem sexo oral até vomitarem. E tudo parece consentido.
Sentada no banco no meio da sala está Sana, outra hóspede de Verena em recuperação, que faz a leitura de tudo aquilo: “Faz-me sentir bem. Sei que não tenho aquele corpo. Não sou uma presa”. Sana acredita que por ser deformada não está em risco de ser apanhada numa situação sexual semelhante.
Novidades para Sana: Jack e Plum, a obesa, sobem para o apartamento dele e começam aos beijos. Jack está muito excitado, quer despi-la e tem claramente a vontade de levar tudo até ao fim. Plum pede-lhe que pare, quer ir mais devagar, não quer tirar a roupa. Jack para por momentos mas depois continua. Beija Plum, vira-a de costas, põe-lhe a mão na boca (como vimos antes num dos vídeos de pornografia) e esfrega-se nela, ambos vestidos, até chegar ao orgasmo.
Plum não desfrutou de nada, sente-se violada, queria mesmo que ele parasse, mas não foi capaz de se defender. Jack não parece ter noção do mal que lhe fez, ao ponto de lhe perguntar em tom mesmo amoroso, se ela não quer dormir com ele lá em casa.
Jack, um tipo normal, faz sexo como vê que é feito. Tem como referência para a atividade sexual a pornografia que vê no PornHub e acha que tudo o que fez é normal e enquadrável num relacionamento amoroso. Como ele, milhares – os que põem os vídeos no quarto de Verena a bombar – andarão a fazer sexo como se fossem estrelas da porno e não homens normais.
6. Todas as pessoas mudam com as circunstâncias
Um dos aspetos mais interessantes da série Dietland é que as personagens estão todas em mudança e as circunstâncias também. A série trata de temas sérios com imenso humor e há desfechos surpreendentes em cada episódio.
Todas as personagens parecem ter segredos, várias personalidades ou, pelo menos, mudar de tom de acordo com o lugar e a companhia em que se encontram. E se vemos Kitty Montgomery a mudar radicalmente de posição acerca de Jennifer porque lhe vai dar muito jeito, vemos Eladio, que parece um lacaio da diretora, a ter um papel fundamental para os interesses feministas.
Keep your friends close, but your frienemies closer. Watch the evolution of the women of Austen Media on https://t.co/eXCkOT5wCT, the AMC app, and On Demand. #Dietland pic.twitter.com/pDFRFfC1z9
— Dietland (@DietlandAMC) August 2, 2018
Depois temos Dominic O’Shea, um ex-polícia que abandonou a carreira por não entrar em esquemas e acaba por entrar nos esquemas de Kitty para sobreviver enquanto detetive, e em quem acabamos por depositar grandes esperanças para proteger Plum, Jennifer e uma das suas operacionais no último episódio.
E claro, temos Plum que, à medida que é exposta ou se expõe às diferentes realidades, vai tomando consciência do corpo, de quem é interiormente, da visão dos outros sobre ela, das suas próprias capacidades e que muda de opinião sobre tudo em todos os episódios.
7. As mulheres gordas são atraentes e saudáveis
No grupo de apoio para pessoas em dieta que Plum frequenta no início de Dietland aparece uma forasteira. É uma mulher alta, larga, com grandes seios, que se veste de forma espampanante: casaco de pelo, microssaia, chamando a atenção em cada espaço que entra. Usa baton vermelho. Da boca dela saem as seguintes palavras: “eu estou aqui para perder peso porque estou a ficar com problemas de coluna. Não estou aqui para me sentir bem com o meu corpo. Eu sinto-me bem com o meu corpo.”
A terapeuta lingrinhas que conduz o grupo ainda tenta contra-argumentar, reforçando o estigma da sociedade sobre o peso e a gordura. Ela contesta, dando conta da sua atividade sexual: “Fiquem a saber que tenho mais p****, do que aqueles que consigo dar conta”.
E vemos Plum nua. Há uma cena lindíssima em que Plum está nua, deitada na cama a escrever ao computador. Convenhamos, não é costume vermos gordas despidas na televisão e a cena desmistifica essa ideia de que quando se tem mais peso ou mais pele do que a norma se é necessariamente feio. Plum nua na cama mostra o contrário: é uma mulher bonita que ali está.
A esta hora já Jack a deseja e o detetive O’Shea, que é casado, parece gostar mais de Plum do que aquilo que ele próprio esperaria. Plum a correr em direção ao carro em fuga mostra que ela é capaz de fazer o que sempre disse: é capaz de correr, é saudável.
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— Dietland (@DietlandAMC) August 1, 2018
Ficou curiosa para ver Dietland? E por falar em ex-libris do entretenimento televisivo, já fez o nosso quiz para saber o quão viciada é em séries de televisão?