“Welcome to Varanasi!”, resmunguei entre dentes, enquanto tirava o pé da gigantesca bosta de vaca onde o enfiara, um segundo antes. O chinelo descolou-se e veio atrás, pegajoso, a cheirar ao horror que eu sentia naquele momento. E assim atravessei o labirinto de ruelas medievais até à guesthouse com a mochila às costas atrás de um miúdo que teimava em insistir que estávamos “almost there, almost there” (quase lá, quase lá).
Confesso que da primeira vez que fui à Índia nem queria ir a Varanasi. Mas a viagem é democrática e eram dois contra um, por isso, teve de ser. E ainda bem que fomos – gostei tanto que já lá voltei duas vezes.
Felizmente, nem sempre com uma entrada tão dramática. Varanasi, construída nas margens do rio Ganges, já se chamou Benares e, antes disso, Kashi. É uma das cidades mais antigas do mundo, continuamente habitada há mais de 3000 anos. Um lugar que desafia todas as lógicas do tempo e do espaço e que, segundo Mark Twain, “é mais velha do que a História, mais velha do que a tradição, mais velha do que a lenda”.
É a essência da Índia, a mais sagrada das cidades sagradas indianas: os hindus acreditam que quem aqui morrer atinge o moksha, ou seja, consegue salvar-se do ciclo de reencarnação. E fica a 10 km de Sarnath, o lugar onde Buda deu o seu primeiro sermão depois da Iluminação.
A carga religiosa da cidade
Com cerca de 23 mil templos e uma configuração que remonta ao século XVIII, Varanasi é um autêntico museu vivo. Contudo, apesar da carga religiosa, mística e espiritual, é também um importante polo industrial, famoso pelas suas sedas, esculturas e perfumes. E é considerada o centro cultural da Índia, onde ao longo dos séculos se desenvolveu o estudo do sânscrito, do ioga e da medicina aiurvédica.
Explorar os seus bairros é testemunhar tudo isto – quando lá voltei este ano, passei uma boa parte do tempo a deambular por esse colorido, caótico e mágico labirinto onde há publicidade pintada nas paredes com nomes de guesthouses, datas de concertos de cítara e tabla, centros de ioga, consultas de astrologia e workshops de tudo e mais alguma coisa; mendigos sentados nos degraus de acesso aos ghats (degraus de pedra ao longo da margem, autênticos anfiteatros onde os peregrinos e devotos realizam os seus rituais de ablução) com doenças e deformações impossíveis de explicar; turistas freaks a beber cappuccino e a comparar experiências de viagem, a filosofar sobre o valor da vida, a tentar explicar a Índia, perceber a Índia, resolver a Índia, salvar a Índia.
Não é raro cruzarmo-nos com grupos de homens em passo acelerado, a carregar macas com cadáveres envoltos em mortalhas brancas e cobertos com flores, a cantar “Ram Naam Sathya Hain” (O Nome de Lorde Rama é a Verdade).
Sentidos alerta
É uma afronta aos sentidos: o cheiro da bosta de vaca e dos esgotos, do açúcar do chá a ferver, do sândalo e do jasmim, do incenso e velas a arder. Os ritmos de Bollywood misturados com orações nos templos e o chinfrim de buzinadelas nas ruas principais.
As vacas com a sua pose sagrada a impedirem a passagem nas ruelas estreitas. O lixo espalhado sem pudor pelos cantos. Mas a essência da cidade está para além dessas ruelas estreitas, nas margens do rio que lava todos os pecados. Varanasi tem ao todo oitenta e oito ghats na margem do Ganges, na área que vai do rio Varuna ao Assi, os dois afluentes que lhe dão nome.
A melhor altura para assistir a este espetáculo à beira-rio é ao nascer do sol, quando a luz empresta ao momento contornos de outro mundo. A melhor forma de o fazer é alugando um barco a remos que sobe e desce o Ganges devagar, permitindo uma perspetiva única sobre esse histérico/histórico colorido onde meditam os saddhus (no hinduísmo e no jainismo é o asceta religioso, monge ou homem santo que renunciou à vida material, seguindo um caminho de disciplina espiritual) completamente nus, cobertos de cinzas, ao lado de famílias de peregrinos a rezar e a cantar, a lavar roupa e a fazer as suas abluções na água imunda do rio onde esporadicamente passam cadáveres a boiar, enrolados em mortalhas brancas – pois nem toda a gente precisa de ser cremada (crianças e mulheres grávidas, por exemplo, são lançados diretamente ao rio, dispensando a cremação).
Há dois ghats exclusivamente dedicados à cremação dos mortos: o Manikarnika e o Harishchandra. Cadáveres a arder nas piras funerárias não é uma paisagem para estômagos sensíveis, mas é uma experiência inolvidável, uma provocação a tudo o que damos por garantido, um desassossego que vem de fora para dentro e a que qualquer pessoa pode assistir, desde que respeite a solenidade do momento. Aconselho modéstia no vestuário e no comportamento.
E abstenham-se de tirar fotografias.
Fogo e flores
Outro momento alto, junto ao Ganges, acontece depois do pôr do sol. Assim que a noite cai, realizam-se aartis em vários ghats, sendo que os mais famosos acontecem no Dashashwamedh, no Panchganga e no Assi Ghat. Um aarti é um ritual religioso de adoração que faz parte de uma cerimónia com orações cantadas, fogo, flores, água e incenso. O objetivo desta cerimónia é mostrar gratidão e humildade ao deus em causa – que, em Varanasi, é o próprio rio Ganges (Ganga).
É possível assistir ao aarti do rio num barco, mas hoje são tantos os que optam por esta modalidade que prefiro ficar em terra. Varanasi é tudo isto e também aquilo que não se consegue descrever com uma narrativa comum. É o sagrado ao virar de cada esquina, a cada passo, em cada piscar de olhos e inspira-expira, na impossível paleta de cheiros, sons, sensações e sentimentos, contradições e agressões, de adjetivos por inventar.
É a fé em cada fio de fumo que sobe da ponta acesa dos paus de incenso, nos pequenos altares e estátuas que são mais omnipresentes do que os deuses que representam. É o lugar onde começa o mito e acaba o real, mas onde não se consegue distinguir um do outro, pois são, em igual medida, causa e consequência, promessa e ameaça, carícia e agressão.