4 mulheres do universo do vinho a conhecer
É verdade, o mundo do néctar dos deuses ainda é dominado por homens, mas, nos últimos anos, a presença feminina tem-se notado cada vez mais nas várias áreas do sector.
Para o comprovar, conversámos com quatro mulheres que trabalham num mundo tradicionalmente masculino, o dos vinhos.
Há ventos de mudança no sector, e isso é atestado por uma maior presença feminina em todas as cadeias de elaboração do néctar dos deuses, mas “há ainda muito a fazer”, dizem unanimemente as nossas entrevistadas Ana Rocha, geral manager da Morais Rocha Wines, no Alentejo; Maria Manuela Maia, responsável pela produção vitícola da Poças, no Douro; Patrícia Santos, enóloga da Quinta da Ramalhosa, no Dão; Filipa Pizarro, diretora técnica da Duplo PR, no Douro.
Não escondem que sentiram algumas dificuldades, mas garantem que a capacidade de trabalho, liderança, organização, adaptação a diferentes contextos e versatilidade femininas têm beneficiado o vinho e que este é, sem margem para dúvidas, “um tema de mulheres”, como já mostrou, no século XIX, a empreendedora Dona Antónia Adelaide Ferreira.
Para todas as mulheres e meninas que queiram seguir esta esta área só dão um conselho: “Que o façam sem hesitar, com trabalho, rigor e paixão”.
Vinhos no feminino
Ana Rocha, geral manager
Depois de ter trabalhado em marketing na indústria farmacêutica e em mobile entertainment durante 10 anos, dois dos quais no Brasil, Ana Rocha decidiu entregar-se de “corpo e alma” ao projeto que o pai tinha criado em 2004, a Morais Rocha Wines, na sua Vidigueira natal.
“Os vinhos são um mundo desafiante, e eu, na minha ingenuidade, achava que era um mercado mais fácil, mas não”.
O rebranding das marcas já existentes e o lançamento de novas têm sido uma das suas grandes apostas, “sempre com o intuito de marcar presença e mexer no mercado, mas com uma assinatura muito nossa”.
Ana Rocha diz não ter sentido barreiras por ser mulher, um olhar diferente talvez, mas porque é um sector muito masculino, e garante que a capacidade de adaptação é uma das mais-valia do sexo feminino.
“Quando comecei, em 2014, já havia algumas mulheres de referência e há cada vez mais. Tenho notado que, tal como eu, há uma nova geração de mulheres a liderar os negócios de família. É só mais um mercado em que nós, com a nossa sensibilidade e intuição, temos cartas para dar. Faz todo o sentido que assim seja, até porque o vinho não é propriamente um produto para ser consumido só por homens. É um mundo transversal a qualquer género”, conta.
Foi partindo desta ideia que, no ano passado, a Morais Rocha Wines lançou o vinho As Velhas Reserva Tinto DOC Alentejo 2017. “É um vinho para enaltecer as mulheres, homenageá-las, tornar explícito o que já estava implícito, ou seja, o vinho também é para as mulheres. Além disso, queria elogiar o envelhecimento e dar-lhe alguma leveza, por isso, contactei para fazer o rótulo a Maria Seruya, artista que no seu projeto Velhas Bonitonas – The Power of Old Ladies, inspira mulheres a perderem o medo de envelhecer”, remata Ana Rocha.
Maria Manuel Maia, responsável de produção vitícola
Quando escolheu a licenciatura em Engenharia Agrícola, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, não sabia se o seu futuro passaria pelo sector do vinho. “Claro que já pensava que gostaria de um dia trabalhar na Poças, mas quando terminei o curso não tinha ainda nada definido, andava a apalpar terreno”, conta-nos Maria Manuel Maia, responsável pela produção vitícola da Poças, tendo a seu cargo a gestão das três quintas da família, função que acumula com a administração da empresa desde 2020.
Mas uma posição que ficou vaga na empresa poucos meses depois de terminada a licenciatura precipitou o convite dos pais e dos primos para se juntar a eles. O sim ao desafio proposto ditou-lhe o percurso profissional.
Hoje, está à frente da Poças, juntamente com os primos Pedro e Paulo Pintão. Os três são já a quarta geração da família a liderar a empresa, que comemorou o centenário em 2018 e que produz vinho do Porto e vinho do Douro.
Quando lhe pedimos para retratar a sua profissão, disse ser um “desafio diário. Os dias são pouco rotineiros, há sempre coisas para fazer, estudar e analisar. Estamos sempre dependentes da Natureza e o nosso grande repto é chegar ao fim da vindima com uvas de boa qualidade”, refere.
Até 2020, era entre as vinhas das quintas das Quartas, em Fontelas, de Santa Bárbara, em Ervedosa do Douro e na de Vale de Cavalos, em Numão, que podíamos encontrá-la todos os dias. Hoje, já não consegue estar presente diariamente, contudo, o facto de não estar sempre fechada num escritório dá-lhe “qualidade de vida”.
Tal como quando começou, “ainda hoje não há muitas mulheres na viticultura; enólogas já há mais, mas isso não deve impedir nenhuma mulher de seguir esta área”.
Maria Manuela Maia acredita que a médio-longo prazo essa diferença se esbata e, olhando para o início da sua carreira, diz ter sentido “numa situação ou outra, um certo distanciamento por ser mulher, mas nunca propositadamente. Talvez por ser da família houvesse mais respeito”, conclui.
Patrícia Santos, enóloga
Sem ligações familiares ao vinho, nada fazia prever que Patrícia Santos escolhesse a Enologia na altura de entrar na faculdade. “Pensei apenas que queria um curso que tivesse química, biologia e matemática, porque era o que gostava e o de Enologia tinha tudo isso. Também gosto muito de ar livre e de não ter rotinas, não me via sentada num escritório a fazer a mesma coisa todos os dias. Tudo isso acabou por pesar”, refere.
Se não gostasse, a ideia era mudar no final do primeiro ano, contudo, apaixonou-se de tal forma que confessa que ser enóloga é uma parte dela e que é difícil dividir o trabalho do resto da sua vida. “Sou muito feliz nesta profissão”, sublinha.
Gosta de sentir todo o processo da vinificação e diz que, ao longo desse tempo, vai “falando com o vinho”, daí que seja presença constante na adega da Quinta da Ramalhosa, em Tondela, na região vinícola do Dão, empresa onde trabalha desde 2017.
“Gosto de ser adegueira, gosto de sujar as mãos. Fazer um vinho é uma forma de arte, e o resultado é a expressão de todos os intervenientes, do produtor aos responsáveis pela vinha e aos enólogos”, realça.
Há 20 anos, quando começou a trabalhar, passou por alguns momentos difíceis por ser mulher num mundo de homens, a tal ponto que chegou a pensar desistir.
“Era uma miúda e olhavam para mim como se não percebesse nada de vinho. Sei que vamos chegar ao mesmo patamar dos homens, mas ainda vai demorar, embora agora já haja muito mais enólogas. O nosso trabalho é cada vez mais respeitado, só temos de continuar a fazê-lo”, diz.
Para fazer um bom vinho, Patrícia Santos diz ser preciso, essencialmente, uma boa uva. “O mais importante é ter boa matéria-prima, a enologia não existe sem a viticultura, por isso, é o passo mais importante”.
Quando olha para o sector vinícola português, aplaude a evolução dos últimos anos: “Melhorámos muito. Deixámos de ser tão amadores, profissionalizámo-nos e isso nota-se no resultado final. Ainda estamos longe de França, que está muito mais avançada na comercialização, mas já há um nicho de mercado para os nossos vinhos.”
Filipa Pizarro, enóloga
Nascida e criada no Douro, não foi de estranhar que Filipa Pizarro tenha escolhido cursar Enologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. “Tinha uma ligação muito grande à terra e a todo este universo”, conta-nos.
Entrou na Duplo PR, empresa de consultoria enológica, logo a seguir a terminar a licenciatura e, em 2012, tornou-se sócia e assumiu o cargo de diretora técnica que ainda hoje desempenha. “Somos uma empresa com 20 anos que se dedica ao acompanhamento técnico de produtores, maioritariamente na Região Demarcada do Douro, e à criação das suas marcas. Paralelamente, somos também produtores das nossas marcas próprias, a 2PR e a Iter, vinhos de autor de pequenas quantidades”, explica Filipa Pizarro. No futuro, o objetivo passa “pela aposta no enoturismo”.
A Duplo PR tem uma equipa maioritariamente feminina, mas Filipa Pizarro diz que ainda é preciso lutar por uma sociedade igualitária e justa. “No sector agrícola e de vinicultura, essa conquista tem sido crescente. Há uma maior presença de mulheres na parte técnica, na área comercial, na enologia, mas também temos mais produtoras, sommeliers e até enófilas. O vinho é um tema de mulheres, mas há ainda muito por fazer”, realça, confessando que, no início, sentiu algumas dificuldades.
“No meu caso, além de ser mulher, comecei a trabalhar muito cedo, aos 23 anos, e em projetos de quinta com uma relação muito estreita com sectores muito marcados pela presença masculina. Notava uma tentativa de desvalorizar o papel ou até o conhecimento, mas temos de ver que estamos numa área em que há uma forte influência do saber fazer”, esclarece.
A humildade, o trabalho, o rigor e a entrega foram e são as suas armas, e Filipa Pizarro lembra que a ligação feminina ao vinho não é só coisa do presente: “Não nos podemos esquecer que no Douro, no século XIX, houve uma mulher de peso, a famosa Ferreirinha, que foi um belíssimo exemplo de capacidade de trabalho, de liderança e de visão empreendedora.”
Da sua profissão, Filipa Pizarro destaca a oportunidade de “’vestir’ diferentes facetas e a magia de ver algo nascer, que começa com a plantação da vinha, passa por vê-la crescer, pela vindima e, depois, ver o vinho evoluir e pensar em toda a imagem e valor da marca”.