O chá português é um dos melhores e nós explicamos porquê
É uma bebida milenar que resulta da infusão de uma só planta, a Camellia sinensis, mas o processo a que é sujeita e o terroir onde é plantada dá-lhe sabores distintos e é aí que começa o fascínio. Venha connosco conhecer as produções de chá em Portugal.
O prazer de beber uma aromática chávena de chá fumegante é um ritual que se pode viver em todo o mundo, mas nem todos os países se podem dizer produtores da segunda bebida mais consumida do mundo, logo a seguir à água. Portugal é quase caso único na Europa e as produções de chá concentram-se maioritariamente na Ásia.
De acordo com os dados de 2019 da FAO (Organização das Nações Unidos para a Alimentação e Agricultura), a lista de produtores de chá é liderada pela China, seguida da Índia, Quénia, Sri Lanka e Turquia. Portugal encontra-se na 46.ª posição com apenas 84 toneladas por ano, mas a ligação do nosso País a esta bebida vem já desde os Descobrimentos, aquando da chegada ao Japão, no século XVI.
Três séculos depois, a Camellia sinensis começou a ser produzida na ilha de São Miguel, nos Açores, onde ainda se mantém, e, em pleno século XXI, chegou ao continente, mais precisamente à zona de Vila do Conde.
Variedades sem fim
Antes de ‘visitarmos’ essas produções de chá, convém esclarecer uma confusão comum: “Só se pode chamar chá quando fazemos uma infusão com as folhas, talos e/ou rebentos de uma única planta chamada Camellia sinensis ou ‘planta do chá’”, explica Maria Ana Silva Vieira, sommelier de chá e autora do livro Receitas à Volta do Chá (Oficina do Livro).
Portanto, o chá é uma infusão, mas nem todas as infusões são chá, e a especialista explica: “Infusão é o processo através do qual colocamos as folhas em água quente e aguardamos alguns minutos. Quando fazemos uma infusão com outras plantas, como camomila, tília, lúcia-lima, erva-cidreira, erva-príncipe ou erva-mate, nunca devemos chamar-lhe chá, mas infusão.”
O chá divide-se em seis tipos, branco, verde, amarelo, preto, oolong e vermelho, e isso deve-se ao processo a que são sujeitas as folhas da planta. O branco é o menos processado, já que as folhas são murchas e secas e não oxidadas. O processo seguido no verde é semelhante, mas, neste caso, a enzima que causa a oxidação é desativada através da aplicação de calor seco ou húmido.
O chá amarelo passa por um processo de fermentação não enzimática, enquanto o preto sofre uma oxidação total e o oolong uma oxidação parcial. Por último, o chá vermelho, também conhecido como rooibos, passa por uma etapa de fermentação com microrganismos vivos. Mas estes cinco tipos dividem-se em variedades sem fim que lhe dão sabores e aromas distintos.
Algo que fez, juntamente com a cultura e história associadas ao chá, com que Maria Ana Silva Vieira se apaixonasse: “O chá tem esse encanto e, a partir do primeiro momento que se toma uma chávena, ficamos imediatamente cativados por esta bebida”.
Chá Camélia
Foi isso que também aconteceu com Nina Gruntkowski, uma grande apreciadora desta bebida que sonhava, “na terceira idade, ter uma plantação de chá” com o marido, o produtor de vinhos Dirk Niepoort, que também adora chá. O que ela não esperaria é que isso acontecesse tão rápido e em Portugal.
“Pensávamos na Ásia até ao dia em que entrevistei [era jornalista], para uma rádio alemã, um especialista de chá suíço que me disse que a Camellia sinensis era da família das camélias ornamentais”, conta. Nessa altura, fez-se luz, afinal vivia no Porto e o norte de Portugal é terra de camélias.
Partilhou esse facto com o entrevistado, perguntando-lhe se seria possível plantar chá na sua terra. “Experimente”, foi a resposta e ela assim o fez no canto mais frio do seu jardim na Invicta e ao seu entusiasmo juntou-se o do marido.
O sucesso dessa planta fez com que plantasse mais 200 e que começasse a investigar mais sobre o processo de produção de chá, que diz ser “um estudo eterno”. “Decidimos, então, que precisávamos de parceiros que percebessem do assunto e contactámos o casal Morimoto, produtor de chá verde biológico japonês, que desde o início apadrinhou o nosso projeto”, explica.
Em 2014, decorridos três anos do início, a plantação foi transferida para Fornelo (freguesia de Vila do Conde) e cresceu, nascendo assim o Chá Camélia de produção biológica e biodinâmica. Hoje, ocupa um hectare com 12 mil plantas.
A primeira colheita do chá verde aconteceu em 2019 e daí saiu o Kintsugi Chá, “um chá verde muito fino e primaveril, fruto da primeira colheita das plantas, colhido e produzido 100% à mão”, conta a produtora. Mas já antes tinham produzido uma infusão – a Flor Chá – com flores da planta do chá desidratadas. Atualmente, produzem ainda o Sencha Rosa, o Luso Chá e o Nosso Chá.
De inspiração japonesa
Quando a questionámos sobre o porquê de na Europa o chá não ser um cultivo comum, Nina Gruntkowski responde que tem muito a ver com as características climáticas necessárias: “É preciso chover, algo que acontece aqui no Norte de Portugal, a terra tem de ser ácida, que também temos por causa do granito, e as temperaturas devem ser moderadas, o inverno pode ser frio, mas a terra não pode gelar, tal como acontece aqui. Na maioria do território Europeu, o tempo é demasiado seco ou frio, mas sei que há tentativas de cultivo na Bretanha, em França e na Escócia”.
Além disso, a fundadora do Chá Camélia, entre risos, acrescenta que “é preciso ter uma ‘panca’ grande, porque é muito trabalhoso e demorado. A planta precisa de cinco anos até à primeira colheita e só ao fim de 10 anos é que se torna rentável”.
A inspiração para o Chá Camélia veio do Japão, mas o desejo de Nina e Dirk “não era copiar o que já é tão bem feito”, mas fazer algo diferente e é aqui que entra o terroir, que tal como nos vinhos, atribui características diferentes aos chás.
“Seguimos o nosso próprio caminho, mais simples e mais artesanal num terroir muito próprio e os Morimoto confirmaram isso quando o provaram e disseram que ‘não sabe a chinês, nem a japonês, sabe a Fonelos’, sem dúvida, um grande elogio”, sublinha Nina Gruntkowski.
Uma paisagem única
É na costa norte da ilha de São Miguel, no arquipélago açoriano, que se encontra a plantação de chá mais antiga da Europa. Data do século XIX e, “na época áurea, primeira metade do século XX, existia uma dúzia de fábricas e vastas áreas de plantação”, conta-nos José António Pacheco, sócio-gerente do Chá Porto Formoso.
Hoje, restam duas: a Fábrica de Chá Gorreana, que data de 1883 e tem-se mantido sempre em funcionamento, e o Chá Porto Formoso, que iniciou a produção há um século, tendo encerrado nos anos 80 e reaberto, em 2001, com nova gerência.
No exterior da fábrica, a paisagem é marcante, o verde da plantação rivaliza com o fundo azul do oceano, “uma paisagem única a nível mundial, que os nossos clientes podem apreciar da esplanada enquanto degustam o nosso chá”, descreve José António Pacheco.
A plantação tem apenas cinco hectares, mas o resultado final “é um produto de produção biológica de muita qualidade. A nossa produção vai ao encontro da sustentabilidade económica, mas respeitando a Natureza”, diz o sócio-gerente.
Na Chá Formoso, produz-se chá preto de três variedades diferentes, e o nosso entrevistado destaca “o último lançamento, o Azores Homeland, um chá muito equilibrado, com muito aroma e paladar, inspirado na produção caseira de chá que se faz nos quintais e quintas das pessoas das localidades aqui à volta e onde as plantas são colhidas e processadas manualmente, tal e qual faziam os chineses que chegaram cá em 1878 para ensinar esta arte”.
Um bom chá
E o que faz de um chá um bom chá? Maria Ana Vieira Silva acredita que são “vários aspetos, desde o terroir à forma de processamento e colheita das folhas e a época em que é feita.
Isso depende dos produtores, no entanto, essa responsabilidade está também nas mãos de cada um de nós, ou seja, no momento de preparar o chá. Quando é preparado corretamente, permite-nos extrair todos os benefícios nutricionais, assim como apreciar todos os seus aromas e sabores”.
Nina Gruntkowski realça que “cada categoria de chá difere na sua preparação e é isso que ensinamos aos nossos clientes, mas também os incentivamos a experimentar e fazê-lo ao seu próprio gosto, porque consegue-se fazer o mesmo chá com sabores completamente diferentes”.
Quanto à forma de o servir, a sommelier de chá assegura que depende muito do gosto pessoal. “Se desejar surpreender os seus amigos com um afternoon tea, brilhará se o servir em delicadas porcelanas. No entanto, poderá oferecer o chá num bule japonês e apreciar um sencha, confortavelmente, num sofá num momento mais descontraído. Ou então, simplesmente tomar o seu chá numa simples caneca de pequeno-almoço. O que importa é o momento em que bebe o chá e que o chá o faça sentir-se bem e feliz”.
José António Pacheco lembra que “o chá, contrariamente ao café, não se toma ao balcão em pé. Para beber um chá, sentamo-nos e há sempre uma boa conversa à volta de uma chávena de chá, que está associado a um certo ritual e até um certo requinte”.
Combinações gastronómicas
Esse ritual é cada vez mais comum em restaurantes e até a acompanhar as refeições. Tal como acontece “com o wine paring, também é possível fazer um tea pairing, ou seja, combinar harmoniosamente o chá com variados alimentos, desde chocolates, queijos, pratos doces ou salgados”, realça Maria Ana Viera da Silva, que exemplifica: “A regra principal é que os sabores não se anulem entre si, é encontrar uma combinação perfeita entre os ingredientes que permita uma experiência gastronómica inesquecível”.
O Chá Camélia trabalha “com vários restaurantes na elaboração de cartas de chá e, na Casa de Chá da Boa Nova, temos mesmo um pairing”, refere Nina Gruntkowski. No restaurante do The Art Gate, isso também acontece com a consultoria de Sebastian Filgueiras, da Companhia Portugueza do Chá.
Trabalho semelhante está também a ser feito no restaurante Largo do Paço, em Amarante, mas com infusões, como nos conta Miguel Moreira, fundador, juntamente com Valdemar Sousa, da Infusões com História.
“Foi uma maridagem que funcionou às mil maravilhas e é uma forma de combinar sabores, sem consumir álcool”, salienta. Uma das razões que levaram à criação desta marca foi a paixão de ambos os sócios pelos desportos de Natureza e gastronomia portuguesa. “Fomos colhendo plantas aquando das nossas caminhadas, secando e fazendo infusões que fomos dando a provar e combinando com pratos da cozinha tradicional portuguesa, e pensámos que esse nosso hábito poderia originar uma marca”, refere Miguel Moreira.
Puseram mãos à obra e procuraram fazê-lo de forma diferenciadora, associando as plantas autóctones à história de cada território, com a consultoria da professora Ana Maria Carvalho, especialista em plantas aromáticas e medicinais.
“Foi assim que nasceu a gama do Românico e do Douro e, este ano, nascerá a do Côa e das Beiras”. Não estão a pensar usar a planta do chá nas usas infusões. “Estamos focados nas plantas autóctones e típicas de cada região e o uso da Camellia sinensis só faria sentido se fizermos uma mistura para os Açores”, afirma Miguel Moreira.