Crónica. Cozinhe a sua independência
O céu azul, as janelas abertas, os campos dourados e as noites quentes relembram-nos de que o verão é a época de dar frutos: aproveite os dias longos e a alegria de uma mesa cheia de amigos para se reencontrar com o poderoso e transformador prazer de cozinhar.
Reza a sabedoria popular que o quente dos dias e a vontade de nos aventurarmos para além de nós mesmos chegam pela mesma altura do ano.
O impulso de nos abrirmos ao mundo e de explorar terrenos desconhecidos está longe de ser apenas uma bela metáfora; é também um sinal de que nos alinhamos com o pulsar do verão.
A natureza guia-nos. O mundo vegetal acelera, cresce, expande-se e dá frutos. Em medicina oriental, o coração e o intestino delgado são os órgãos que mais se sintonizam com a essência deste ciclo expansivo.
Não se admire por isso se sentir os batimentos do seu coração acelerarem ao ritmo de novas e inexploradas paixões e se sentir mais vontade em estar com os outros.
Por outro lado, é o intestino delgado que assume a digestão das novidades e, à semelhança do que faz com o alimento, escolhe o que ficará connosco e o que será dispensado.
Abrir os horizontes e conectar-se com o lugar onde se encontra, com os ingredientes que crescem, com os agricultores que produzem, com as pessoas que a rodeiam, com um corpo e uma mente sã, inspira-nos a valorizar o prazer esquecido de tornar a cozinha numa extensão de tudo isso.
E se é tempo de sair da casca e crescer, façamo-lo coletivamente, à volta de uma mesa repleta de boa gente e de boa comida feita de raiz e em conjunto. A independência é uma aventura, que se constrói com curiosidade, com desejo, com repetição e com todos.
Partir para a ação em 6 passos
1. Rodeie-se de quem mais gosta
Encha a mesa de amigos e de família. Uma mesa cheia de comensais é sempre uma inspiração e um bom ponto de partida para despertar o cozinheiro que há em si.
2. Dê largas ao espírito coletivo e faça da cozinha um encontro social
Aproveite as reuniões para cozinhar em equipa e partilhar tarefas.
Acertar os temperos e os tempos de confeção em conjunto é uma ótima forma de aprendermos uns com os outros e de nos lembrarmos que a cozinha é um espaço de criação. Inclua até os curiosos mais desajeitados e estenda-lhes as tarefas mais simples.
3. Compre de forma deliberada
Onde quer que se encontre, vá aos mercados, feiras e vendedores ambulantes. Explore e deixe-se inspirar pela oferta de produtos locais, vivos, frescos e regionais.
Fale com os agricultores e com os produtores, faça perguntas e perceba quem são, o que fazem e a história por detrás dos produtos. Ficará com uma ideia mais clara sobre o caminho da matéria prima, fonte e alimento da nossa vida, que sairá valorizada no seu gesto de cozinhá-la.
Mesmo em alguns supermercados de maior dimensão, é frequente encontrar uma qualidade e variedade de alimentos provenientes das imediações agrícolas, representando alternativas bem diferentes da oferta das mesmas cadeias nas grandes cidades, afastadas dos campos.
Sempre que for caso disso, não deixe de parar ao cruzar-se com a iguaria da época vendida à beira da estrada. Interesse-se pela rota do alimento local e apoie os produtores que a vendem diretamente ao consumidor.
4. Sirva-se dos sentidos como guia de orientação
Desperte a sensibilidade, sinta o cheiro das ervas num terreno mais seco, o fresco da maresia do mar e o queimar do sol numa seara. Passeie-se pelo interior dos campos e pela orla do mar e colha vagens de rosmaninho e tomilho, folhas de hortelã e louro, salicórnia, espinafres selvagens, rúcula, amoras, figos, alperces…
Inclua os mais pequenos nessa exploração, sensibilizando-os para a origem das coisas vivas que nos alimentam. Se quiser levar este gesto mais longe, muna-se de um guia de plantas silvestres.
5. Seja experimental
Explore novos métodos culinários. Faça um lume de raiz, cozinhe num grelhador, aventure-se num forno a lenha, numa panela que ferve ao ar livre, num tacho com pressão, frite, marine, faça salmouras, fermente.
Todos estes métodos mais tradicionais representam uma cozinha que se conecta francamente com o meio exterior, com o clima, com os campos de origem e com o mundo dos elementos. Experimentar estes processos menos industrializados e mais ancestrais liga-nos ao alimento e ao caminho da transformação por que passa, tornando-se mais evidente o efeito da energia desses cozinhados no nosso organismo.
6. Cozinha é cultura
Descubra tradições, saberes, usos e hábitos da região onde se encontra e tente reproduzi-los.
O paladar, os temperos e as maneiras de comer ligam-nos à terra por onde passamos e contam-nos a sua história e a sua geografia agrícola e silvestre.
7. Do princípio ao fim
Observar, tocar, cheirar, comparar, comprar ou colher, preparar, cozinhar, sentar, conversar, celebrar, lavar, limpar e arrumar, tudo isto pertence ao ritual da cozinha.
Faça tudo, faça em boa companhia e sinta o prazer de começar e acabar uma grande tarefa.
Cozinhar é também imaginar. Nem todos os dias as nossas mesas se enchem de festa, mas quanto mais fortalecer esse músculo, mais simples se torna.
Quando voltar a casa, cozinhar terá ganho outro significado, mais prático, mais intuitivo, mais social e mais transformador. Cultive essa autonomia e essa independência.
Fazer é poder. Traga este poder para dentro de sua vida, da sua casa e da sua comunidade.
Paula Azevedo é consultora, professora e chef de Macrobiótica. Para mais informações, contactar através do e-mail p.narciso.azevedo@gmail.com.