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Crónica. Um por todos, todos por um: o poder secreto do seu microbioma

Crónica. Um por todos, todos por um: o poder secreto do seu microbioma

O stresse enfraquece o organismo e a capacidade de resposta ao meio. Se não controla fatores externos, cuidar de si está totalmente ao seu alcance. Dê atenção à gigantesca comunidade probiótica do seu sistema digestivo: o famoso microbioma de que toda a gente fala.

Por Abr. 30. 2020

Tudo o que se manifesta hoje começa bem atrás. Corpo e mente são o resultado de um percurso que fomos construindo a cada gesto, a cada passo, dia após dia.

Uma saúde de ferro ou uma enfermidade indesejável dificilmente se ganha de um dia para o outro. São na verdade o resultado de um longo processo. Esta é a essência da medicina oriental.

Investigadores da Cornell University mostraram que tomamos cerca de 35.000 decisões por dia. Segundo a perspetiva macrobiótica, a saúde e a vitalidade são em boa parte resultado dessas decisões.

Por intermédio das nossas escolhas diárias, carregadas de padrões e hábitos dos quais a alimentação faz parte, produzimos no sistema digestivo (nos intestinos) a essência da nossa vitalidade: o sangue.

Apesar do desenvolvimento tecnológico, nunca antes houve tantas doenças autoimunes, alergias, depressões e ansiedades; perdas e aumentos de peso crónicos, flutuações de humor, processos inflamatórios e doenças cujas causas, à primeira vista, nos parecem totalmente inexplicáveis.

Somos seres plurais, povoados por uma gigantesca comunidade de micróbios e estudos recentes vêm agora comprovar que a nossa protecção ou predisposição a essas desordens está intimamente ligada com o que se passa no nosso sistema digestivo.

Considerados também como um segundo fígado, os microorganismos desintoxicam, limpam e expulsam, juntamente com pele, rins, pulmões e sistema linfático
Paula Azevedo

Kikai. Motor e fábrica de vitalidade 

Comendo, vivemos; e vivendo, comemos. Para alimentar o corpo e o cérebro é preciso produzir energia.

Na perspetiva oriental, digerimos a terra em forma de alimentos, no hara, localizado no centro do abdómen. Em japonês, kikai, ou hara, traduz-se no oceano de ki (energia). Aqui criamos e recriamos a vida até ao fim dos nossos dias.

É nesta zona que, para além dos ovários e do útero, se encontra parte do sistema digestivo: o intestino grosso e, bem no seu centro, o intestino delgado.

Os nossos intestinos desempenham funções comparáveis às das raízes das plantas. E, tal como a biodiversidade dos solos se alimenta de sistemas de vida primitivaos micro-organismos –, também dentro de nós se passa um fenómeno semelhante.

Essa comunidade microscópica, designada pela ciência de microbiota, tem sido matéria de extraordinárias descobertas que reposicionam completamente o papel e a importância dos micro-organismos na nossa existência. Sem eles, a nossa vida não seria possível.

behind the scenes do sistema digestivo

Do microbioma fazem parte milhões, biliões e triliões de microrganismos com os seus genes: vírus, fungos, leveduras e na sua maioria bactérias, que equivalem a 10 vez mais o número de células “humanas” do corpo.  Em percentagem, representam cerca de 90% do que somos.

Vivem na imensidão do nosso corpo, concentrando-se mais numas regiões que noutras. Adoram cavidades e orifícios como a boca, a pele, os olhos, os órgãos genitais, os ouvidos ou o umbigo, mas cerca de 90 % desse microbioma encontra-se no nosso intestino.

Lá, ajudam-nos na decomposição dos alimentos, contribuindo para que sejam absorvidos. Sintetizam novos nutrientes, como vitaminas do grupo B, estimulam e treinam o sistema imunitário e influenciam todos os nossos sistemas fisiológicos, direta ou indiretamente.

Considerados também como um segundo fígado, esses microorganismos desintoxicam, limpam e expulsam, juntamente com pele, rins, pulmões e sistema linfático. Influenciam toda a nossa biologia, do humor aos processos inflamatórios. E tudo isto em troca de alimento e de casa.

O stresse ativa nervos que afetam a digestão, tornando-a menos eficiente e demorada e sobrecarregando o intestino
Paula Azevedo

Instinto, gut feeling ou segundo cérebro?

O processo digestivo é de tal ordem fundamental à vida que tem um sistema nervoso só para si: o sistema nervoso entérico. Uma rede complexa de centenas de milhões de neurónios a partir dos quais atua e monitoriza a multiplicidade de tarefas que tem pela frente, sem esquecer, claro, dos biliões de bactérias o habitam!

O sistema nervoso entérico é tão complexo que consegue funcionar com autonomia em relação aos inputs do cérebro, o que lhe valeu a referência de “segundo cérebro” pela ciência.

Trata-se de uma novidade para nós, mas não certamente para a medicina oriental, que desde há milhares de anos para cá cuida da estreita relação cérebro-intestino para diagnosticar e reequilibrar desordens do corpo e da mente. Para os orientais, a saúde física e mental começa nos intestinos.

Ainda que de forma inconsciente, consultamos o que nos diz o nosso gut feeling quando temos uma sensação sobre alguém que acabamos de conhecer ou quando, por exemplo, temos de tomar uma decisão difícil.

E, já lhe aconteceu ficar tão nervosa com uma situação que tem de ir a correr para o wc? Ou o contrário: diante de uma obstipação/prisão de ventre de um par de dias, o pensamento começa a ficar turvo e pouco claro, carregado por uma enorme dor de cabeça?

O intestino e o cérebro comunicam entre si, constantemente, através de um canal primordial: o eixo cérebro-intestino. E, naturalmente, articulam-se, influenciam-se e fazem da vida de cada um, uma experiência única.

É mais ou menos isto: intestino saudável, cabeça feliz. Na medicina oriental, seria algo como: o corpo e mente são um só, e um é o reflexo do outro.

Stresse e imunidade

Neste circuito cérebro-intestino, altamente complexo e funcional, onde circulam constantemente sinais e comandos entre os dois sistemas, é fácil entender que às vezes alteramos a nossa flora intestinal, e outras vezes, é ela que ‘nos altera’.

O stresse, por exemplo, ativa nervos que afetam a digestão, tornando-a menos eficiente e demorada, sobrecarregando o intestino que, por sua vez, manda sinais ao cérebro de que está sobrecarregado. É uma pescadinha de rabo na boca!

A situação agrava-se quando este estado de alerta no corpo se prolonga no tempo. E de episódio isolado, passamos a viver num estado de stresse e ansiedade permanentes.

O stresse, a alimentação, a respiração e o movimento têm tanta influência na nossa comunidade intestinal como a robustez e a saúde do nosso microbioma têm na saúde física e mental
Paula Azevedo

70% das células do sistema imunitário vivem no intestino

Neste panorama, tão característico dos dias de hoje, o efeito de um cérebro stressado sobre a quantidade de muco produzido no intestino e o tempo da digestão, facilmente alteram a permeabilidade da mucosa intestinal que suporta a vida e a qualidade das bactérias do microbioma, desregulando toda a produção de substâncias e funções que decorrem da sua actividade.

Isto tem consequências diretas sobre o sistema imunitário, claro, podendo inclusivamente precipitar e agravar processos inflamatórios, tanto no intestino como fora dele.

Mais: sabia que é no intestino que se produz cerca de 90% da serotonina? Popularizada como uma das ‘hormonas da felicidade’, este neurotransmissor fundamental para certos processos fisiológicos tem uma grande influência na nossa percepção do mundo, humores, libido, ansiedade e felicidade.

A sua concentração, se reduzida, por consequência de uma disfunção intestinal, pode estar associada a vários transtornos psiquiátricos, facto que recentemente ganhou a atenção das áreas da neurociência e da psiquiatria.

É por isso frequente que, reagindo com stresse ao stresse, se juntem a esse pesado pacote o cansaço, a tristeza, humores flutuantes, baixa de imunidade e uma péssima performance na casa de banho.

O stresse, a alimentação, a respiração e o movimento têm tanta influência na nossa comunidade intestinal como a robustez e a saúde do nosso microbioma têm na saúde física e mental que desfrutamos.

As boas notícias? Podemos mudar

Se é verdade que “tudo o que tem um princípio, tem um fim”, como nos diz George Ohsawa, autor do livro Macrobiótica Zen, então todos os processos são reversíveis.

Da mesma maneira que empobrecemos a nossa comunidade intestinal, com implicações diretas na nossa imunidade e vitalidade, podemos reverter o processo, com a força das nossas ações.

As células bacterianas têm uma enorme plasticidade, pelo que está totalmente ao nosso alcance – através do que fazemos dia após dia, nomeadamente comer – criar um ambiente interno fértil e cooperativo, que nos permita reconquistar a biodiversidade do nosso estimado e poderoso microbioma.

O medo de ficar doente e a resposta interna fight-or-flight (lutar ou fugir) gerada pelo stresse enfraquecem o sistema digestivo.

Entre em ação e seja co-produtora da sua fortaleza. Alimente o seu organismo plural, comendo alimentos naturais que repovoem os seus intestinos de bactérias que trabalham a favor da vida humana.

Fortalecer de dentro para fora é a chave para lidar com todas as adversidades. Quer saber como fazê-lo na prática? Leia o próximo artigo.

Paula Azevedo é consultora, professora e chef de Macrobiótica. Para mais informações, contactar através do e-mail p.narciso.azevedo@gmail.com.

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