Não há volta a dar, o consumo de carne tem de diminuir se quisermos salvar o planeta. Ainda no início de julho, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) voltou a fazer o apelo, afirmando que “a redução do consumo de carne e lacticínios tem o potencial de ser a maneira mais rápida e fácil de reduzir as crises climática, de biodiversidade e de saúde que enfrentamos”.
Este apelo não é de estranhar se pensarmos que a indústria agropecuária é responsável pela emissão de 14,5% do total de gases com efeito estufa, mais do que qualquer outro sector, por causa do crescimento das explorações intensivas nas últimas décadas, como demonstra a mesma organização.
Além disso, tem sido igualmente fomentadora da desflorestação devido ao cultivo de rações para animais e ainda contribui para as emissões do sector dos transportes no escoamento das mercadorias.
Quer fazer parte da mudança? Então, está na hora de reduzir a quantidade de carne que come e olhar para a sua qualidade ou mesmo deixar de a consumir.
Para a ajudarmos nessa transição, estivemos à conversa com dois chefs de cozinha, uma nutricionista e um empresário do ramo de produtos substitutos de carne.
Sistema alimentar desequilibrado
“Há sinais claros vindos de várias partes de que tem de haver uma transformação estrutural na maneira como comemos, como nos relacionamos com a Natureza, com os recursos, com a sazonalidade dos produtos, ou seja, com toda a cadeia alimentar”, afirma Diogo Noronha, chef e um dos fundadores do coletivo FoodRiders, ao qual pertence o Ameaça Vegetal, uma dark kitchen baseada na dieta flexitariana, daí que tenha uma ementa que dá primazia aos alimentos de origem vegetal.
“Avançámos para este conceito porque o sistema alimentar está muito desequilibrado e acreditamos que o futuro da alimentação passa por comermos menos carne. Só assim teremos um sistema alimentar mais equilibrado e sustentado. As pessoas têm de escolher melhor a qualidade dos produtos e respeitar os ciclos da Natureza e os ecossistemas”, assegura Diogo Noronha.
Pensar a transição
Um passo fundamental para deixar de comer carne ou reduzir o seu consumo é olhar com outros olhos para os legumes. “Há o preconceito de que comer vegetais é monótono, mas nós argumentamos exatamente o contrário. O mundo vegetal tem tudo aquilo que apreciamos, desde a textura ao sabor, da variedade a uma grande flexibilidade, que nos deixa entrar em receituários de outras culturas e fundir sabores”, salienta o chef do Ameaça Vegetal.
Outro aspeto positivo de uma alimentação baseada em plantas, continua, é “a sensação que temos no fim da refeição. Ficamos bem, pois estamos a fazer uma alimentação mais saudável, com todos os nutrientes necessários”.
Para uma transição bem-sucedida, Diogo Noronha recomenda mente aberta, informação, arriscar um bocadinho, explorar a sazonalidade dos produtos e que seja um processo feito de forma suave, “até porque, quando é muito radical, há um choque e as pessoas acabam por voltar a comer mais proteína animal”.
Opinião semelhante tem o chef David Vieira, fundador do Alimenta a Vida, que o leva a casa dos clientes para preparar jantares saudáveis muito focados nos vegetais e na sazonalidade.
“Dou mais ênfase a tudo o que não é proteína animal e pretendo mostrar a versatilidade dos vegetais. Há muitas coisas que podemos fazer com legumes e que não podemos fazer com carne ou peixe. Uma combinação da qual gosto muito, miso e mel, é um exemplo disso”, realça David Vieira.
Combinações improváveis
A experiência no Alimenta a Vida mostra-lhe que há cada vez mais pessoas a procurar uma cozinha sem proteína animal e isso também o levou a organizar um workshop para quem quer eliminar o peixe e a carne da alimentação.
“A transição não é fácil, porque requer alguma pesquisa, paciência e, sobretudo, gosto. Como nem todos os legumes podem ser comidos crus e não são tão simples de preparar como um bife, as pessoas têm de se informar e aprender a cozinhá-los de forma a retirarem prazer do que comem. Toda a mudança envolve uma ação, e o meu conselho é que brinquem com os sabores à volta dos legumes, que experimentem novas combinações com alimentos diferentes, como juntar fruta, frutos secos, especiarias e ervas aromáticas”, explica David Vieira, que acrescenta que a avelã, por exemplo, fica muito bem com abóbora, cenouras, couve-flor e aipo.
Nas especiarias, avisa, só há que ter em conta a quantidade, “se for pouca, não se nota; no ponto certo, é espetacular; se for demasiada, não se consegue comer”.
Já no que diz respeito às ervas aromáticas, o chef diz que “devem ser usadas só nas finalizações e são ideais para saladas frias, já que com o calor perdem propriedades”.
Dá o exemplo da salada árabe fattoush, na qual “o pão, o bulgur, o pepino e o tomate sem pele em cubos são envolvidos em ervas aromáticas. Quando envolvemos uma salada com hortelã, coentros, salsa ou manjericão, aquela ganha outra dimensão”.
A carne que não o é
Foi também a pensar na transição para uma alimentação sem carne ou, pelo menos, com uma menor quantidade, que Morten Toft Bech decidiu criar a Meatless Farm, em 2016.
“Quando eu e a minha família nos mudámos de Londres para Ibiza para viver numa quinta, a minha mulher, que é vegetariana, desafiou-me a criar um produto que se assemelhasse à carne, mas que fosse o mais natural possível, mais barato do que o que já existia e de que toda a família gostasse para podermos usar na lasanha e no esparguete”, conta.
O empresário aceitou o desafio: com a ajuda de um laboratório inglês, desenvolveu a marca e, dois anos depois, entrava no mercado com o picado de base vegetal, ao qual já juntou outros produtos, todos eles feitos de ervilha, arroz e outras proteínas vegetais.
“Atualmente, temos uma unidade de produção de proteína vegetal no Canadá e até já vendemos a matéria-prima para outras empresas”, diz Morten Toft Bech, que fez essa aposta para garantir a qualidade do produto usado.
Caminho irreversível
O seu público-alvo não são os veganos nem os vegetarianos, mas quem quer mudar a sua alimentação. “Não preciso de convencer a minha mulher, que já não come animais, mas sim o meu pai, que adora comer um bife todas as noites. Se eu lhe der um produto semelhante, ele vai diminuir o consumo de carne. Não acho que seja errado as pessoas comerem carne, mas é obrigatório reduzir o seu consumo. Antes, comia-se carne uma vez por semana por não ser acessível economicamente, hoje come-se todos os dias. Não precisamos de tanta proteína animal, nem de uma produção intensiva desta, que a enche de antibióticos e de hormonas e que só está a prejudicar o nosso planeta”, explica, alertando para o facto de os produtos da Meatless Farm usarem 90% menos terra e 70 a 80% menos água do que uma produção agropecuária.
“Até 2025, se dividirmos o nosso volume de produção por 500 kg, que é o que em média se retira de uma vaca, percebemos que a emissão de CO2 é menor em quatro mil milhões e pouparemos 1,1 triliões de água. Mesmo uma pequena empresa como a nossa pode fazer a diferença, olhe se as grandes o quisessem fazer…”, sublinha.
Os benefícios nutricionais
Em termos nutricionais, há vantagens em optar por um regime alimentar menos rico em carne e derivados. Quando tal acontece, é “comum que se aumente o consumo de alimentos de origem vegetal, como leguminosas, cereais, produtos hortícolas, fruta fresca, frutos secos e sementes. Assim, a variedade e o equilíbrio nutricionais que se podem ganhar com esta mudança, na alimentação, são dos maiores benefícios que se obtêm”, refere Sónia Sá, nutricionista Celeiro.
Além disso, “a redução ou eliminação de carne provoca uma redução da ingestão de lípidos totais, lípidos saturados e de colesterol. Por outro lado, a restrição do consumo de carnes de animais jovens, sejam de gado suíno, bovino, caprino ou caça também será positiva, pela menor ingestão de purinas (compostos azotados que fazem parte dos ácidos nucleicos), cujo metabolismo pode elevar os níveis de ácido úrico. Este, quando se acumula nas articulações, provoca inflamação e dor”.
As substituições
Para que o organismo não sofra de carências é preciso ir buscar proteínas a outros alimentos, quando se elimina ou reduz o consumo de carne. “Esta deve ser substituída por outras fontes alimentares ricas em proteínas, como os ovos, o peixe, as leguminosas (feijão, grão, ervilhas, favas, lentilhas, soja…) e a quinoa. No entanto, há que lembrar que os alimentos ricos em proteínas vegetais devem ser conjugados com o consumo de cereais (arroz, trigo, milho, centeio, cevada, aveia, espelta, etc.) para se elevar o seu aproveitamento pelo organismo”, salienta Sónia Sá.
Relativamente às vitaminas e minerais, a especialista em nutrição diz que “algumas pessoas, se predispostas à anemia, poderão ter de recorrer à suplementação com ferro e vitamina B12. Para garantia de um normal funcionamento do sistema imunitário, também poderá ser vantajosa a suplementação com vitamina D e zinco”.
E os produtos que se assemelham a carne são vantajosos? “Trata-se de produtos com carácter utilitário. Nutricionalmente, suprem ou superam a quantidade de proteínas normalmente ingeridas numa refeição principal. Os seus ingredientes variam de marca para marca, podendo incorporar, além de leguminosas, cereais e gorduras vegetais, alguns aditivos que conferem estabilidade e permitem a conservação do alimento. Convém estar atento ao teor de sal destes produtos. É expectável que estes alimentos se reservem para situações do dia a dia em que não tenha sido possível planear e executar uma refeição com ingredientes frescos, simples, com menor grau de processamento”, responde a nutricionista.
E as crianças?
Quando os pais decidem deixar de comer carne, como devem proceder com as crianças? A nutricionista Sónia Sá diz que “regra geral, as crianças adotam o regime alimentar que os pais seguem. É controverso afirmar se a criança deve ou não comer carne. O que se pretende é que tenha um desenvolvimento e crescimento adequados, não devendo ser posta em situação de risco alimentar, de saúde e de vida. O pediatra deve acompanhar as crianças, ajudando a prevenir qualquer situação de risco, avaliando e investigando qualquer desvio, caso surja, independentemente do regime alimentar a que a criança seja sujeita”.