Luxo silencioso: a arte de vestir de forma elegante e sem esforço
Quem sabe cala. Quem fala não sabe. A citação é de Lao Tsé e não há indícios de que fosse rico, mas podemos ousar transpor a ideia para a nova tendência da indumentária. O luxo silencioso é tão discreto que só os eleitos do Olimpo conseguem distinguir umas calças de ganga da feira de umas Balenciaga.
Sem logótipos ou espalhafato, o luxo discreto tem o apelo da sofisticação natural, aquele je ne sais quoi que distingue a classe dos bem vestidos sem esforço da restante Humanidade amarrotada.
Facilmente elegantes numas calças de ganga e t-shirt, eles conquistam o mundo, as melhores mesas nos restaurantes e os sorrisos dos funcionários dos guichets – pelo menos é o que imaginamos, enfiados nas nossas calças de ganga e t-shirt, com um ar incompreensivelmente desarranjado.
O segredo é de polichinelo: a simplicidade endinheirada faz-se de materiais premium e cortes impecáveis, detalhes que fazem a diferença quando se trata de ter ‘bom ar’.
A ideia do luxo sóbrio sempre existiu, obviamente. Nos meios tradicionais, ostentar sempre foi de mau gosto, coisa de novos ricos ou almas excêntricas dadas ao espalhafato.
Um luxo normal
Quando se tem berço, o exibicionismo nem chega a fazer sentido, comer em talheres de prata é normal e vestir bem é um dado adquirido.
Nada grita ou chama a atenção, mas num olhar mais atento podemos descobrir que as camisolas ‘básicas’ afinal são de caxemira da Mongólia, as camisas feitas em seda de Como, os vestidos de algodão egípcio do delta do Nilo e as calças de seda Shantung selvagem.
Claro que o dinheiro não garante o bom gosto. As gerações mais antigas podiam não ter um olhar especialmente apurado para os caimentos das peças – eram os endinheirados com casacos de ombreiras demasiado grandes, proporções entre partes de cima e de baixo ligeiramente desajustadas ou roupas anacrónicas herdadas dos bisavós.
São os mais elegantes que criam impacto, com mangas ou bainhas nunca demasiado compridas e ajustes garantidos por um serviço personalizado de alfaiates.
Os cinco por cento
Esta é, então, a vida normal dos cinco por cento de clientes que representam 40 por cento das vendas do mercado de luxo, também chamados high net worth individuals (HNWI) e ultra high net worth individuals (UHNWI).
Para estes espécimes discretos, estar longe dos holofotes também é uma estratégia de segurança. Afinal, a exibição de sinais exteriores de riqueza está mais vulnerável a roubos, fiscalizações e invejas.
Com grande capacidade financeira, eles sustentam o crescimento atual do mercado de luxo, afiança a coordenadora dos cursos executivos de luxo no ISEG-Executive Education, Helena Amaral Neto.
“A criação de riqueza global das últimas décadas deu origem a um número crescente de milionários e bilionários, com reflexo direto no crescimento do mercado de luxo”, reflete.
Quando a crise aperta, os muito ricos (e só eles) ficam ainda mais ricos.
“Este novo ciclo económico, com a queda nos mercados financeiros (e correspondente redução da riqueza) e a subida das taxas de juro vão com certeza arrefecer os impulsos consumistas da base alargada de clientes e as marcas focadas no chamado luxo acessível’ vão ser impactadas”, vaticinou, em fevereiro, na revista F Luxury.
Ou seja, quando a crise aperta, os muito ricos (e só eles) ficam ainda mais ricos.
A ascensão da riqueza discreta
Os números confirmam estas previsões: em 2022, e apesar da queda nas vendas globais em 2020, motivada pela pandemia, o mercado de luxo atingiu vendas acima de 350 mil milhões de euros, um crescimento de 22 por cento face ao ano anterior, dados da consultora Bain-Altagamma.
No relatório de tendências de luxo de 2021, a Euromonitor confirma que estes consumidores muito ricos estão a intensificar a procura de produtos com design discreto.
Isto vem corroborar o que a agência de previsões WGSN antevia já em 2019, no relatório Silent Luxury: The Rise of Understated, Stealth Wealth, algo como “a ascensão da riqueza discreta e camuflada”.
Qualidade, fabrico artesanal e exclusividade passam a estar no topo dos interesses desta classe, assim como a preferência por materiais naturais e designs atemporais e minimalistas.
Mão dá para ignorar o elefante na sala, sobretudo se, mesmo a tentar ser discreto, ele usa um bomber jacket tom Ford de quase sete mil euros.
Um dos fatores apontados para o aumento do interesse no luxo ‘escondido’ é precisamente a crise económica.
Depois de um breve período eufórico no pós-pandemia, em que mergulhámos na ‘moda dopamina’, cheia de cores vibrantes e tons fluorescentes, pomos novamente os pés no chão e vemos a dura realidade.
Os muito ricos pairam acima do mundo, mas a sua ostentação pode ser considerada ofensiva em tempos de dificuldades.
Teoricamente, ao focar-se em artigos de maior qualidade e mais duradouros, o luxo silencioso pode ser visto como um passo em direção a uma forma de estar mais consciente dos impactos negativos da produção maciça de roupa barata.
Mas, ainda assim, não dá para ignorar o elefante na sala, sobretudo se, mesmo a tentar ser discreto, ele usa um bomber jacket tom Ford de quase sete mil euros.
História repete-se
Enfim, nada disto é novidade. Nos anos que se seguiram à crise económica de 2008, já se tinha assistido a um ressurgimento do look luxuoso e discreto.
E foi este precisamente o argumento do responsável financeiro do grumo LVMH – detentor de marcas como Louis Vuitton, Dior e Fendi – quando os analistas questionaram como é que esta tendência se iria refletir no grupo este ano.
Em resposta, Jean-Jacques Guioni lembrou que se, em 2008, as marcas tiveram opções para satisfazer esta procura, agora não deverá ser diferente.
Na altura, Vuitton e a Gucci, conhecidas pelos logótipos ostensivos, reorientaram o foco para se adaptarem aos ventos de mudança e passaram a investir em linhas com produtos mais discretos que transmitem uma imagem mais sofisticada.
Outras marcas a apostarem na tendência foram a Celine, The Row e Bottega Venetta, com coleções minimalistas, sem exibir logótipos de maneira explícita, e produzidas com materiais de elevada qualidade e acabamento impecável.
Na joalharia, assistiu-se a um movimento similar com a Tiffany e a Carter a lançarem designs mais sóbrios.
Tudo em caxemira
Agora, o cenário é mais o menos o mesmo. Ostentar não está na ordem do dia.
Nas propostas para o verão de 2023, marcas como a Bottega Venetta apostaram até em looks grunge, com itens tão despretendiosos como jeans largos e camisas de xadrez fabricados em couro finíssimo, assim como calças e camisas caqui, polos e camisas brancas ou calções de ‘ganga’, tudo só aparentemente banal.
A The Row, fundada pelas irmãs Mary-Kate e Ashley Olsen, é outra marca incontornável quando se fala em luxo discreto.
Queridinha de figuras como Victoria Beckham, Angelina Jolie, Beyoncé ou Kate Middleton, dá-se ao luxo mais supremo de todos: o de abdicar de ter uma presença oficial nas redes sociais. Tudo para, segundo as fundadoras, manter a privacidade e exclusividade da marca.
Este clube é só para quem pode, claro, e a comunicação entre pares faz-se à luz do dia, mas de forma cifrada, uma espécie de maçonaria da indumentária.
As aparições da atriz Gwyneth Paltrow em tribunal por causa de um acidente numa estância de esqui em 2016 têm sido apontadas como o epítome deste luxo discreto.
O jornal The Guardian usou expressões como “chique bilionário” para descrever o visual pontuado por camisolas de gola alta de caxemira, sobretudos The Row verde-seco e botas de sola tratorada da Versace. Tudo peças que sussurram o seu valor em vez de o deixar visível, escrevia a publicação britânica.
Quem tem dinheiro para comprar sabe que estas peças são de luxo, quem não tem permanece na ignorância, junto com os restantes 99 por cento.
Luxo silencioso na televisão
Mas talvez a marca que mais burburinho esteja a gerar nos últimos tempos seja a casa centenária italiana Loro Piana, que aparece em vários episódios da série da HBO Succession, estreada em 2018 e vencedora de vários Emmy.
A série retrata a vida de uma família ultrarrica tradicional (old money, na expressão inglesa), com a personagem principal, Shiv Roy (interpretada por Sarah Snook), a recordar frequentemente ao marido, Tom (Matthew Macfadyen), que ele é um novo-rico a tentar parecer o que não é.
A responsável de guarda-roupa, Michelle Matland, foi várias vezes citada, descrevendo o estilo de Tom como um pavão: “Ele vai às lojas óbvias e o seu lema é ‘Se é caro, é bom’. E se puder ver a etiqueta de preço, ainda melhor”.
Além de desejarem parecer integrados numa elite, os novos-ricos pensam intensamente em dinheiro, algo bizarro e até desagradável para um endinheirado com berço capaz de usar sem pestanejar um boné de baseball de 600 euros da Loro Piana que irá voar na praia.
Apesar de não ser imitável pelos 99 por cento que alimentam a indústria de fast-fashion ou nem isso podem fazer, o buzz do luxo silencioso e de Succession tomou conta do TikTok à séria, desafiando as marcas acessíveis a reproduzirem a tendência, mesmo sem os materiais premium.
É que, tal como a beleza, a riqueza faz sonhar. Se servir de consolo, podemos lembrar que, em última análise, o fenómeno não é sobre roupa ou dinheiro.
Chique é sair sem carteira
A atração do estilo de vida old money é a segurança interior que vem da ausência de preocupações com a sobrevivência e um quadro mental que convive permanentemente com um universo de maiores possibilidades. Por outras palavras, não desfazendo da importância óbvia do dinheiro, às vezes a atitude é tudo.
Amy Odell, jornalista de moda e autora do livro Tales from the Back Row: An Outsider’s View from Inside the Fashion Industry, refletia há tempos numa newsletter do Substack, no facto curioso de os muito ricos não precisarem de usar carteira, pelo menos carteiras grandes, e foi investigar a origem deste acessório.
É um luxo incrível sair de casa apenas com o telefone.
“Na época em que as mulheres tinham bolsos, eles eram uma espécie de coisas enormes que pendiam dos quadris. As donas de casa mantinham as suas costuras lá e pequenos pedaços de comida e era apenas esse equipamento matronal e fofo”, afirma.
“Quando a carteira foi inventada, era para mulheres que iam dançar e divertir-se e não tinham de se preocupar com as coisas da casa. É um luxo incrível sair de casa apenas com o telefone“, adiciona.
“Tens alguém para cuidar do teu filho, não carregas coisas de bebé. Nem precisas de andar com barrinhas de granola, porque não sabes quando vai comer. Sais pela vida e o mundo abre-se para ti. O que precisares chegará até ti ou ser-te-á dado”, completa.
É este também o apelo da riqueza. O que desejamos quando desejamos muito dinheiro? Mais do que a fortuna em si ou o que ela pode comprar, queremos esta liberdade de andar confiantes no mundo.
O vil metal condiciona a mente, seja por excesso ou por defeito. Sendo assim, podemos sempre praticar um luxo silencioso interno e sair à rua como se a nossa indumentária fosse bilionária. Não custa fazer a experiência de viver um bocadinho mais vestidas desta liberdade: de cabeça bem erguida, sorriso interior e peito aberto para o mundo. Este, sim, é o maior luxo.